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CONTO – Tremendo Companheiro – Padre Manuel Bernardes

por | maio 8, 2024

Frei Domingos, carmelita, vindo de Tortosa para Valença, com outros companheiros que tinham ido tomar ordens, se lhe ajuntou no caminho um moço mui confiado, falador e atrevido; e na pousada porfiou que havia de agasalhar-se ao mesmo aposento e cama de frei Domingos.

Na mesa não assistiu à benção, nem às graças, entrando e saindo, e inquietando a todos.

O servo de Deus se pôs a rezar, e depois se deitou vestido; e querendo pegar do sono, tornou o moço a entrar, falando disparates, e não o deixando repousar.

Começou enfim a despir-se, e despiu até a camisa; e ao tempo que frei Domingos o ia a repreender daquela imodéstia, viu que despia também a pele. Aqui já devia entender que não era moço, mas demônio; e, costumado a semelhantes tramoias, quis ver esta em que parava.

Lançou o demônio a pele de arremessão sobre uma mesa; e logo destramente com um dedo esgravatou e tirou fora um olho, e depois o outro, e os acomodou com tento, emparelhados em lugar seguro. Depois tirou os dentes, pondo-os em outro lugar por sua ordem enfileirados. Depois foi tirando os nervos, e músculos, e veias, e finalmente a carne, raspando dos ossos com vagar e curiosidade; e ficou como pintamos a morte em esqueleto, e assim se foi a meter na cama com frei Domingos, espalhando-lhe pelos vestidos e cama o sangue e miolos.

Sentia o servo de Deus sobre si aquela viva morte mais pesada e mais fria que os Alpes. Que remédio para expelir tão horrenda e molesta companhia? Deu em fazer fervorosos atos de amor de Deus; e com o verdadeiro calor deles foi pouco a pouco desfazendo aquela fantástica ossada.

Pela manhã o estalajadeiro, não aparecendo aquele hóspede, fez pagar por ele a frei Domingos, pois fora seu camarada. Não faltavam a este servo de Deus louvores humanos; e assim era necessário que lhe não faltasse açoute dos demônios.

Nascido em 1644, nas ruas históricas de Lisboa, Padre Manuel Bernardes foi mais do que apenas um escritor, orador e religioso português; ele foi uma figura emblemática que moldou a retórica sagrada do século XVII. Sua vida foi tecida com os fios da devoção, da erudição e da busca incessante pela simplicidade na comunicação espiritual.

Os primeiros murmúrios da sua vocação foram ouvidos nos corredores do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, onde absorveu as primeiras letras, antecipando um futuro em que suas palavras ecoariam nos corações dos fiéis. Mas foi em Coimbra, entre os volumes empoeirados da Filosofia e do Direito Canónico, que ele forjou os alicerces do seu conhecimento. Sua ordenação como sacerdote foi apenas o começo de uma jornada marcada pela devoção e pela busca incansável pela excelência espiritual.

Assumindo o manto de confessor do bispo de Viseu, D. João de Melo, Padre Manuel Bernardes mergulhou nas profundezas da alma humana, buscando purificar e elevar aqueles que o buscavam em confissão. Mas foi na Congregação do Oratório de S. Filipe de Néri que encontrou seu verdadeiro chamado, vivendo trinta e seis anos de clausura, imerso na contemplação e na composição de obras que ecoariam através dos séculos.

Assim como seu contemporâneo, Padre António Vieira, Bernardes tornou-se um mestre da oratória sagrada, acreditando que as palavras proferidas no púlpito deveriam ser claras como cristal e sinceras como o coração humano. Ele não buscava adornar a verdade com floreios retóricos, mas sim apresentá-la de forma simples e direta, como um espelho reflete a realidade.

Sua obra transcendeu os limites da sua época, permanecendo como farol de inspiração para os séculos vindouros. “Exercícios Espirituais e Meditações da Via Purgativa”, “Luz e Calor”, “Armas de Castidade” e “Estímulo Prático para Seguir o Bem e Fugir do Mal” são apenas alguns dos tesouros literários que ele deixou para a posteridade.

No entanto, mais do que um escritor talentoso, Padre Manuel Bernardes foi um homem de profunda fé e humildade. Sua linguagem emotiva e lírica ecoava com a pureza de um espírito imaculado, cativando os corações daqueles que o ouviam. Sua vida foi uma busca constante pela simplicidade e pela verdade, refletida não apenas em suas palavras, mas também em seus atos.

Ao olhar para trás, para a vida e obra do Padre Manuel Bernardes, somos lembrados de que a verdadeira grandeza reside na humildade, na devoção e na busca incessante pelo divino. Ele não apenas deixou um legado literário, mas também um exemplo vivo de como a simplicidade pode ser a mais poderosa das ferramentas na comunicação espiritual. Que sua memória continue a inspirar gerações futuras a buscar a verdade, a beleza e a simplicidade no caminho da fé.

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