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CONTO -O Horrível – Conto de Horror de Guy de Maupassant

por | maio 7, 2024

A noite tépida descia lentamente.

As senhoras tinham ficado no salão da quinta. Os homens, sentados ou a cavalo nas cadeiras do jardim, fumavam diante da mesa abandonada, carregada de taças e cálices.

Seus charutos brilhavam como olhos na sombra espessa, de minuto em minuto.

Acabavam de narrar um terrível acidente acontecido na véspera: dois homens e três mulheres afogados à vista dos convidados em frente ao rio.

O General G… pronunciou-se:

— Sim, estas coisas são emocionantes, mas não são horríveis.

 

“O horrível — esta velha palavra — quer dizer muitíssimo mais que terrível. Um medonho acidente como este emociona. Para que se experimente o horror, é preciso mais que a emoção da alma e mais que o espetáculo de uma morte terrível. É preciso um calafrio de mistério ou uma sensação de pavor anormal, sobrenatural. Um homem que morre, mesmo nas condições mais dramáticas, não causa horror. Um campo de batalha não é horrível. Os crimes, os mais vis, raramente são horríveis.

 

Eis dois exemplos pessoais que me fizeram compreender o que se pode entender pelo horror.

O primeiro foi durante a guerra de 1870.

Nós nos retiramos para Pont-Audemer, depois de termos atravessado Rouen. O exército — vinte mil homens aproximadamente, vinte mil homens derrotados, debandados, desmoralizados, esgotados — ia reagrupar-se no Havre.

A terra estava coberta de neve.

A noite caía. Dede a véspera que não se comia. Fugia-se, porque os prussianos não estavam longe.

 

Toda a planície normanda, lívida, manchada pela sombra das árvores em volta das herdades, se estendia sob um céu negro, rude e sinistro.

 

Não se ouvia mais nada, na luz eterna do crepúsculo, além de um ruído confuso, brando e descompassado de tropas em marcha, de um bater de pés infinito, misturado de um vago tinido de equipamentos e de sabres. Os homens, curvados, arqueados, sujos, muitas vezes mesmo esfarrapados, arrastavam-se, apressavam-se sobre a neve com longo passo extenuado.

A pele das mãos colava ao aço das culatras, porque gelava terrivelmente nessa noite. Muitas vezes, eu via soldado tirar os sapatos para andar com os pés nus, de tanto que sofria com o calçado, e deixava em cada passada um traço de sangue.

Depois, no fim de algum tempo, sentava-se num campo para descansar alguns minutos, e não se levantava mais. Cada homem que sentava era um homem morto.

Tínhamos deixado atrás de nós muitos desses pobres soldados estropiados, que contavam tornar a partir imediatamente, desde que tivessem descansado um pouco as suas pernas inteiriçadas. Mas, mal cessavam de se mover, de fazer circular em sua carne cansada o sangue quase inerte, um entorpecimento invencível apoderava-se deles, pregava-os à terra, fechava-lhes os olhos, paralisava em segundos esta mecânica humana estafada. E eles se abatiam um pouco, com as testas apoiadas nos joelhos, sem, contudo, cair de todo, porque seus rins e seus membros tornavam-se imóveis, duros como um pau, impossíveis de dobrar ou de endireitar.

E nós outros, mais robustos, íamos sempre, gelados até a medula, avançando por uma força de movimento dado nessa noite, nessa neve, nessa planície fria e mortal, esmagados pelo pesar, pela derrota, pelo desespero, sobretudo oprimidos pela abominável sensação do abandono, do fim, da morte, do nada.

 

Percebi dois gendarmes [policiais militares] que seguravam pelo braço um homenzinho singular, velho, sem barba, de aspecto verdadeiramente surpreendente.

 

Procuravam um oficial, porque acreditavam ter prendido um espião.

A palavra espião correu logo entre os estropiados e estes fizeram um círculo em volta do prisioneiro. Uma voz gritou:

— É preciso fuzilá-lo!

E todos esses soldados, que caíam de cansaço, que se conservavam de pé apoiados nas suas espingardas, tiveram subitamente esse arrepio de cólera furiosa e bestial, que impele as multidões ao massacre.

Eu quis falar. Era então o comandante do batalhão. Mas não se conheciam mais chefes. Teriam fuzilado a mim mesmo.

Um dos policiais disse:

— Há três dias que ele nos segue, pedindo a todo mundo informações sobre a artilharia.

Eu procurei interrogar este ser:

— Que andas fazendo? O que queres? Para que acompanhas o exército?

Ele balbuciou algumas palavras numa linguagem ininteligível.

Era deveras um estranho personagem, de espáduas estreitas, de olhar sonso, e tão perturbado diante de mim que não me restava mais dúvida alguma de que era mesmo um espião. Ele me considerava de cima a baixo, com um ar humilde, estúpido e manhoso.

 

Os homens à nossa volta gritavam:

 

— Ao paredão! Ao paredão!

Eu disse aos gendarmes:

— Respondeis pelo prisioneiro?

Não tinha acabado de falar quando um empurrão terrível me deitou por terra, e eu vi, por um segundo, o homem tomado pelos soldados furiosos, derrubado, ferido, arrastado à beira da estrada e lançado contra uma árvore, já quase morto, sobre a neve.

E logo fuzilaram-no.

Os soldados atiravam nele. Tornavam a carregar as armas e atiravam de novo, com um furor brutal.

Batiam-se para ter a sua vez. Desfilavam diante do cadáver e disparavam repetidas vezes, como se desfilassem diante de um féretro para lançar água benta.

Mas, de repente, um grito soou:

— Os prussianos! Os prussianos!

E eu ouvi, por todo o horizonte, o rumor imenso do imenso exército perdido que corria.

O pânico, nascido desses tiros sobre esse vagabundo, havia enlouquecido os próprios executores que, sem compreender que o pavor vinha deles mesmos, fugiram e desapareceram na sombra.

Eu fiquei só, diante do corpo com os dois gendarmes que, retidos pelo dever, haviam permanecido perto de mim.

Eles levantaram aquela carne moída, mole e sangrenta.

— É preciso revistá-lo — disse-lhes.

E dei uma caixa de fósforo de cera que tinha em meu bolso. Um dos soldados iluminava o outro. Eu estava em pé entre os dois.

O gendarme que revistava o corpo declarou:

— Vestido com uma blusa azul, camisa branca, calças e um par de sapatos.

O primeiro fósforo apagou-se. Acendeu-se outro. O homem continuou, remexendo os bolsos:

— Uma faca de chifre, um lenço xadrez, uma caixa de rapé, um punhado de barbante, um pedaço de pão.

O segundo fósforo apagou-se. Acendeu-se o terceiro. O gendarme, depois de ter por muito tempo apalpado o cadáver, exclamou:

— É tudo.

Eu disse:

— Vamos despi-lo. Acharemos talvez alguma coisa contra a pele.

E, para que os dois soldados pudessem agir ao mesmo tempo, eu mesmo me pus a iluminá-los. Eu os via, ao clarão rápido do fósforo, tirar a roupa, peça por peça, pôr a nu este fardo de carne ainda quente e morta.

De súbito, um deles exclamou:

— Ah, meu comandante, é uma mulher!

Eu não vos poderia dizer que estranha e pungente sensação de agonia me oprimiu o coração. Não podia acreditar naquilo, e ajoelhei-me sobre a neve, diante dessa massa informe para ver: era mesmo uma mulher!

Os dois gendarmes, interditos e desmoralizados, esperavam que eu emitisse uma opinião.

Mas eu não sabia o que pensar, o que supor.

Então, o brigadeiro pronunciou-se lentamente:

— Talvez ela viesse procurar seu filho, que era soldado de artilharia, e de quem não tinha notícias.

E o outro respondeu:

— Talvez fosse isto mesmo…

Eu, que já tinha visto coisas bem terríveis, comecei a chorar. E senti, em face dessa morta, nessa noite gelada, no meio dessa planície negra, diante desse mistério, diante dessa desconhecida, assassinada, o que quer dizer a palavra horror.

Eu tive esta mesma sensação no ano passado interrogando um fuzileiro argelino, que era um dos sobreviventes da missão Flatters.

Vós conheceis os detalhes desse drama atroz. Mas há um que, decerto, ignoreis.

O coronel ia ao Sudão pelo deserto e cruzava o imenso território dos tuaregues, que são, nesse oceano de areia, que vai do Atlântico ao Egito, e do Sudão à Argélia, uma espécie de piratas comparáveis aos que antigamente assolavam os mares.

Os guias que conduziam a coluna pertenciam à tribo dos Chambaa, de Ouargla.

Um dia, montaram o acampamento em pleno deserto, e os árabes declararam que, como a fonte ainda estava um tanto distante, iriam recolher a água com todos os camelos.

Apenas um homem preveniu o coronel de que era uma armadilha. Flatters não acreditou, e acompanhou a caravana com os engenheiros, os médicos e quase todos os seus oficiais.

Eles foram assassinados junto à fonte e todos os camelos capturados.

O capitão do posto árabe de Ouargla, que ficara no acampamento, assumiu o comando dos sobreviventes, spahis e fuzileiros, e iniciaram a retirada, abandonando as bagagens e os víveres, por falta de camelos para transportá-los.

Então, eles partiram naquela solidão sem sombras e sem fim, sob um sol devorador, que os abrasava de manhã à noite.

Uma tribo veio render-se, trazendo tâmaras. Estavam envenenadas. Quase todos os franceses morreram e, entre eles, o último oficial.

Só ficaram alguns spahis, com seu comandante Pebóguim, e mais alguns fuzileiros nativos da tribo Chambaa. Tinham ainda dois camelos, que desapareceram uma noite com os árabes.

Em seguida, os sobreviventes compreenderam que teriam de devorar-se uns aos outros e, logo que descobriram a fuga de dois homens com os dois animais, os que ficaram se separam e começaram a andar, cada um de per si, na areia macia, sob a cruel chama do sol. Conservavam entre si uma distância maior que a de um tiro de fuzil.

Andaram, assim, o dia todo, levantando, em cada lugar, na extensão abrasada e plana, essas colunas de poeira que denunciam, ao longe, quem caminha pelo deserto.

Mas, numa manhã, um dos viajantes se desviou bruscamente, aproximando-se de seu companheiro. E todos pararam para olhar.

O homem na direção de quem marchava o soldado faminto não fugiu. Caiu ao chão e apontou a arma para o que se aproximava. Quando viu que o outro estava a uma boa distância, atirou. Mas não o atingiu. Este continuou avançando e, depois, assumindo a sua vez, matou o seu camarada.

Então, de todo o horizonte, acorreram os demais, para garantir a sua parte. E o que havia matado, esquartejando o morto, distribuiu as postas.

E se separaram novamente aqueles aliados irreconhecíveis, até que o próximo assassinato os unisse novamente.

Durante dois dias eles viveram daquela carne humana compartilhada. Em seguida, voltou a fome, e o primeiro a matar matou outra vez. E, novamente, como um açougueiro, trinchou o cadáver e o ofereceu aos companheiros, mantendo apenas a sua parte.

E assim continuou a retirada de antropófagos.

O último francês, Pobéguim, morreu assassinado nas margens de um poço, na véspera do dia em que chegou o socorro. Vós compreendeis agora o que é o que eu entendo por horrível?”

Eis o que nos contou, naquela noite, o general G…

 

 

Guy de Maupassant (1850-1893)) permanece como um dos mestres indiscutíveis do conto, cuja vida e obra são entrelaçadas em uma narrativa tão intrigante quanto suas histórias. Criado nos campos franceses ao lado de uma mãe culta e melancólica, vítima do abandono de um esposo infiel, Maupassant floresceu em Paris na década de 1870, imerso na efervescência literária e nos círculos intelectuais que contavam com luminárias como Zola, Flaubert e o russo Turgueniev.

Durante uma década prodigiosa, de 1875 a 1885, deu vida a uma miríade de romances e contos, cerca de trezentas obras que ecoam em todos os cantos do mundo. Títulos como “Bola de Sebo”, “O Colar”, “Uma Aventura Parisiense”, “Mademoiselle Fifi” e “Miss Harriett” se tornaram tesouros literários amplamente reconhecidos. Sua escrita conquistou o coração dos franceses e além, tornando-o possivelmente o autor mais lido naquele final de século XIX.

A fortuna e a fama abriram as portas de seu mundo, mas por trás das cortinas brilhantes da sociedade parisiense, uma sombra sinistra começou a se insinuar. A sífilis, implacável, irrompeu em sua saúde, tecendo uma teia de tormentos inexplicáveis, tremores e visões. Essas sensações surreais e opressivas encontraram eco em contos como “O Horla” e “É Ele”, assustadores em sua genialidade. Em 1882, torturado por esses tormentos, Maupassant tentou escapar através do suicídio. Sua luta terminou no ano seguinte, em meio à semi-insanidade, deixando-nos aos 43 anos.

A singularidade da obra de Maupassant reside em sua ampla gama temática. Como um verdadeiro pintor impressionista, ele captura as nuances de Paris: as luzes que dançam sobre o Sena, os reflexos nos parques, o brilho noturno dos boulevards. Essas luzes iluminam os dramas humanos essenciais: paixão, prazer, solidão, tédio e morte. Ele é o cronista da Europa do fim do século XIX, mas suas histórias transcendem fronteiras, alcançando uma dimensão universal.

Alguns podem criticar Maupassant por sua suposta superficialidade, por retratar apenas a casca da existência, sem mergulhar nas profundezas psicológicas. É verdade que alguns de seus contos são crônicas de uma época, outros meras anedotas. No entanto, como apontou um crítico perspicaz, “o escritor é profundo em sua aparente superficialidade, pois ele reconhece o vazio na vida de suas personagens, que buscam o prazer, mas encontram apenas a inevitável ruína”.

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