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Artigos, Análises, Dicas e Contos

CONTO – Berenice – Edgar Allan Poe

por | maio 9, 2024

O infortúnio é múltiplo. A infelicidade na terra tem muitas formas. Dominando o amplo e curvo horizonte, seus matizes são vários como os vários matizes de cores do arco-íris – e igualmente distintos, ainda que numa gradação toda particular. Dominando o amplo horizonte como o arco-íris! Por que fui derivar da beleza algo tão atroz? Da promessa de paz tal símile de tristeza? Mas se, na Ética, o mal é uma consequência do bem, então, de fato, a tristeza se origina da alegria. Assim como a memória da felicidade passada é a angústia de hoje, ou os tormentos atuais são frutos dos êxtases que uma vez existiram.

Meu nome de batismo é Egeu; não mencionarei o de família. No entanto, não há na região torreões mais notórios e antigos do que aqueles que abrigam as minhas lúgubres e cinzentas salas hereditárias. Nossa linhagem tem sido chamada de uma estirpe de visionários; e, em muitas particularidades extravagantes – no caráter da mansão familiar – nos afrescos do salão principal – na tapeçaria dos dormitórios – nos cinzelados de alguns botaréus na sala de armas – mas em especial na galeria de pinturas antigas – no estilo da biblioteca – e, por último, na peculiar natureza de conteúdo dos volumes dessa biblioteca, encontram-se evidências mais que suficientes para justificar tal denominação.

As lembranças de minha infância estão ligadas à biblioteca e os seus volumes – mas destes últimos não falarei nada. Ali morreu minha mãe. Ali eu nasci. Mas seria mera frivolidade dizer que eu não havia vivido antes – que a alma não tem existência prévia. Você não acredita? – Não vamos discutir o assunto. Convencido eu próprio, não busco convencer ninguém. Há, contudo, uma lembrança de formas aéreas – de olhos espirituais e significativos – de sons melodiosos ainda que tristes – uma lembrança que não será excluída; memória como uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconstante; e como uma sombra, também, dada a impossibilidade de livrar-me dela enquanto existir a luz de minha razão.

Nasci nessa sala. Assim, acordando da longa noite do que parecia, mas não era, o nada, enveredei-me em seguida, repentinamente, nas próprias regiões da terra das fadas – num palácio de imaginação – num selvagem domínio de pensamento e erudição monásticos. Não admira que olhasse ao redor com olhar ardente e assustado – que desperdiçasse minha infância em leituras e dissipasse minha juventude em devaneios; mas o curioso é que os anos rolaram e a plena maturidade encontrou-me ainda na mansão de meus pais. É espantoso como a estagnação tenha caído sobre as fontes de minha vida – espantoso como uma total inversão tenha se apossado da natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, somente como visões, enquanto as selvagens ideias da terra dos sonhos tornaram-se, por sua vez – não o material de minha vida diária – mas de fato a minha total e única existência.

Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos na minha mansão paterna. Entretanto crescíamos de modo diferente – eu, com problemas de saúde, afundado em tristezas – ela, ágil, graciosa, transbordante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para mim, os estudos em clausura. – Eu, vivendo concentrado nos meus sentimentos, corpo e alma entregues à mais intensa e penosa meditação. – Ela, vagueando pela vida, despreocupada, sem pensar nas sombras do caminho, ou no voo das horas, tão silencioso como as asas de um corvo. Berenice! – invoco o seu nome – Berenice! – e das cinzentas ruínas da memória mil lembranças em tumulto se agitam ante esse som. Ah! Vívida é agora a sua imagem em minha mente, tal como nos dias antigos de despreocupação e alegria! Oh, esplêndida e, no entanto, fantástica beleza! Oh, sílfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, náiade em suas fontes! E então – então tudo é terror e mistério, e uma estória que não deveria ser contada. Uma doença – uma doença fatal – caiu como o simum sobre seu corpo, e, mesmo nos instantes em que a contemplava, o espírito de mudança ia abatendo-se sobre ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos, o caráter, e, de um modo ainda mais terrível e sutil, perturbando-lhe a própria personalidade! Ai, o destruidor veio e foi embora, e a vítima – onde estava ela? Eu não mais a conhecia – ou não a conhecia mais como Berenice.

Entre o numeroso séquito de males entrelaçados àquele primeiro e funesto, que efetuou uma revolução de espécie tão horrível na natureza moral e física de minha prima, pode ser mencionado entre os mais aflitivos e obstinados uma espécie de epilepsia que não raro se transfigurava em catalepsia – catalepsia que se assemelhava a um estado bem próximo da morte real e do qual ela retornava, na maioria das vezes, de forma alarmantemente abrupta. Enquanto isso minha própria enfermidade – disseram-me que não havia mais chance de curá-la – minha própria enfermidade, então, cresceu rapidamente e assumiu por fim um caráter monomaníaco, de uma modalidade nova e extraordinária – revigorando a cada hora, a todo instante – finalmente obtendo sobre mim o mais incompreensível domínio. Essa monomania, se devo assim chamá-la, fundava-se numa irritabilidade mórbida daquelas propriedades da mente referidas, na ciência metafísica, como “faculdade da atenção”. É mais que provável que eu não esteja sendo compreendido; mas receio, na verdade, não existir nenhum modo possível de transmitir à quase generalidade dos leitores uma ideia adequada dessa nervosa exacerbação de interesse com que, no meu caso, os poderes de meditação (para evitar termos técnicos) se ocupavam e absorviam na contemplação dos objetos, mesmo os mais comuns do universo.

Refletir infatigavelmente durante horas, com a mente concentrada em alguma frívola ilustração à margem da página de um livro ou na tipologia desse livro – entregar-me absorto à contemplação de uma curiosa sombra a cair oblíqua sobre o tapete, ou sobre o chão – perder uma noite inteira a observar a chama invariável de uma lâmpada, ou as brasas de uma lareira – devanear durante dias sobre o perfume de uma flor – repetir monotonamente alguma palavra banal, até que o som, devido à frequente repetição, impedisse a transmissão de qualquer ideia ao espírito – perder completamente a sensação de movimento ou de existência física, perseverando obstinadamente e por longo tempo num estado de absoluta imobilidade corporal – tais eram algumas das mais comuns e menos perniciosas extravagâncias induzidas por uma condição das faculdades mentais que, na verdade, não eram ao todo sem paralelos, mas por certo ofereciam um desafio para algo como análise ou interpretação.

Vamos, entretanto evitar mal-entendidos. A excessiva, grave e mórbida atenção, assim excitada por objetos absolutamente frívolos, não deve ser confundida em sua natureza com a tendência à meditação comum a todos os seres humanos, a que se entregam, em especial, as pessoas de imaginação ardente. Nem mesmo era, como a princípio se poderia supor, uma condição extrema, exagerada, dessa tendência, mas uma situação fundamental e nitidamente diversa. Naquele caso, o sonhador, ou cismático, ao interessar-se por um objeto usualmente não-trivial, imperceptivelmente vai perdendo de vista esse objeto, enredando-se num emaranhado de deduções e sugestões resultantes daí, até que, ao final de um dia não raro pleno de voluptuosidade, desaparece o incitamento ou causa primeira de seus devaneios, inteiramente afundado no esquecimento. No meu caso, o objeto inicial é invariavelmente trivial, embora vá assumindo, por intermédio de minha visão doentia, uma importância irreal e refratária. Raramente eram feitas inferências e as poucas realizadas retornavam, por assim dizer, de maneira pertinaz, ao objeto original, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis; e, ao final do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora da visão, alcançava aquele interesse exagerado, sobrenatural, que era o traço predominante da doença. Em síntese, as faculdades do espírito mais particularmente exercidas eram, em mim, como já o disse antes, as da atenção, assim como, para o sonhador comum, são as especulativas.

Os meus livros, à época, se de fato não contribuíam para excitar a perturbação, participavam largamente, como pode ser percebido, dada a sua natureza imaginosa e inconsequente, das qualidades características da perturbarão mesma. Lembro-me bem, entre outros, do tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio De amplitudine beati regni Dei – da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus – do De Carne Christi, de Tertuliano, no qual as sentenças paradoxais Mortius est Dei filius; credibile est quia ineptum est: et sepultus resurrexit; certum est quia impossible est, ocuparam todo o meu tempo por muitas semanas de laboriosa e frutífera pesquisa.

Assim pareceria que, deslocada da posição de equilíbrio somente por coisas banais, minha razão mostrasse semelhança com aquele penhasco no oceano mencionado por Ptolomeu Hephestion, o qual, resistindo com firmeza aos ataques da violência dos humanos, como à impetuosa fúria das águas e dos ventos, tremia apenas sob o toque da flor conhecida pelo nome de asfódelo. E embora, a um pensador distraído, pudesse aparentar um evento fora de qualquer dúvida que a terrível transformação provocada pela infeliz enfermidade na condição moral de Berenice produzia em mim motivos para o exercício daquela intensa e mórbida meditação, cuja natureza ainda tenho algumas dificuldades para explicar, esse entretanto não era o caso, em absoluto. Nos intervalos de lucidez da minha doença, a desgraça dela na verdade me causava sofrimento, e, sentindo profundamente a completa decadência da sua beleza e de sua meiga vida, nunca deixei de ponderar com amargura no modo impressionante pelo qual, repentinamente, tão estranha reversão se tivesse abatido sobre ela. Essas reflexões, porém, não faziam parte da idiossincrasia do meu mal; eram como as que ocorriam, em circunstâncias semelhantes, à maioria das pessoas. Fiel a seu próprio caráter, minha doença revelava interesse nas menos importantes e, no entanto, mais surpreendentes mudanças na estrutura física de Berenice, bem como na singular e imensamente aterradora distorção de sua personalidade.

Durante os dias mais esplendorosos de sua beleza sem paralelos, era mais do que certo que eu nunca a amara. Na estranha anomalia de minha existência, os sentimentos, comigo, jamais provinham do coração e as paixões nasciam sempre da mente. Pelas cinzentas madrugadas – em meio às sombras entrelaçadas das florestas, ao meio-dia – e no silêncio de minha biblioteca, à noite, ela passava esvoaçante diante de meus olhos, e eu a via – não como a Berenice, ser vivo e respirante, mas como a Berenice de um sonho – não como um ser terrestre – de carne e osso – mas como uma abstração desse ser – não como algo que se pudesse admirar, mas analisar – não como um objeto de amor, mas como um tema para as mais abstrusas e desconexas especulações. E agora – agora eu estremecia na presença dela, empalidecia à sua aproximação. Entretanto, mesmo lamentando amargamente sua condição decadente e desoladora, eu lembrava que ela havia me amado por longo tempo e que, certa ocasião, num impulso irrefletido, eu lhe havia pedido em casamento.

E agora estava por fim se aproximando a data de nossas núpcias quando, numa tarde hibernal, um desses dias intempestivamente quentes, calmos e brumosos, que se assemelham à “ama-de-leite da bela Alcíone”, eu sentei no gabinete interno da biblioteca e pensei estar sozinho. Mas, ao levantar os olhos, vi Berenice em pé a minha frente.

Foi a minha imaginação excitada – ou uma indistinta influência da atmosfera – ou o impreciso crepúsculo do aposento – ou as vestes cinzentas que lhe caíam folgadas sobre o corpo – a causa daquela aparição de contorno tão vago e espectral? Não saberia dizê-lo. Ela não mencionou uma única palavra, e eu – tornei-me incapaz de pronunciar sequer uma sílaba. Gélido calafrio percorreu-me o corpo; oprimia-me uma sensação de angústia insuportável e uma curiosidade irrefreável, dilacerante, passou a invadir o meu espírito. Sentei-me de volta na cadeira, permaneci alguns segundos sem respirar, imóvel, com os olhos pregados naquela figura. Ai! sua magreza era excessiva e nenhum vestígio existia mais daquele ser de outrora. Meus olhos ardentes examinaram então minuciosamente o seu rosto. A fronte era alta, muito pálida, singularmente serena, parcialmente coberta por uma mecha de cabelos que em outros tempos foram negros como o azeviche, e que sombreavam as têmporas encovadas com anéis agora de um amarelo vivo e contrastavam, pelo seu caráter fantástico, com a melancolia dominante em seu rosto. Os olhos eram sem vida, apagados, parecendo sem pupilas e eu desviei involuntariamente a atenção de seu olhar vítreo para me deter na contemplação de seus lábios delgados e contraídos. Eles se entreabriram: e num sorriso de especial significado, os dentes da transformada Berenice mostraram-se, lentamente, à minha visão. Quisera Deus que eu nunca os tivesse visto, ou, ao fazê-lo, houvesse morrido!

O bater de uma porta que se fechava perturbou-me a atenção e, ao levantar os olhos, percebi que minha prima não estava mais no aposento. Mas do desordenado aposento de meu cérebro, ai de mim!, nada havia saído; ali ficara o lívido e assustador espectro daqueles dentes. Nem a mínima mancha se via em sua superfície – nem um matiz no esmalte – nem a mais leve reentrância na regularidade de suas pontas – nada, a não ser o que os breves instantes de seu sorriso haviam impresso na minha memória. Eu os via agora mais nítidos do que os vira então. Os dentes! Os dentes! – Eles estavam aqui e ali, em qualquer lugar, e visíveis, e palpáveis diante de mim; longos, estreitos, excessivamente brancos, com os lábios pálidos retorcendo-se sobre eles, como no exato e terrível momento em que apareceram pela primeira vez. Então veio a fúria total de minha monomania, e lutei em vão contra sua estranha e irresistível influência. Ante a multiplicidade de objetos do mundo exterior, o meu pensamento não se ligava a outra coisa a não ser aqueles dentes. Eu os desejava com uma ânsia frenética. Todos os outros assuntos, todos os diversos interesses se absorveram naquela única contemplação. Eles – apenas eles se apresentavam ao olho do espírito, e eles, na sua solitária individualidade, passaram a ser a essência de minha vida mental. Eu os examinava sob todas as luzes. Revolvia-os em todos os aspectos. Investigava suas características e demorava-me a estudar todas as peculiaridades. Media a sua forma. Refletia sobre as alterações de sua natureza. Estremecia ao atribuir a eles, na imaginação, um poder sensível, senciente, e mesmo quando fazia abstração dos lábios, conferia a eles uma capacidade de expressão moral. Foi dito acertadamente de Mademoiselle Sallé que tous ses pas étaient des sentiments e, de Berenice, eu acreditava com a maior seriedade que todos os seus dentes eram ideias. Des idées! – ah, estava aqui o pensamento idiota que me destruiu. Des idées! – ah, por isso eu os cobicei tão loucamente! Pressentia que só a posse deles poderia restituir a minha paz, devolvendo-me a razão. E assim fechou-se a noite ao meu redor – e então vieram as trevas, que se demoraram, foram embora – e amanheceu de novo – e as névoas de uma segunda noite reuniam-se agora em torno – e eu continuava ainda sentado imóvel naquele aposento solitário; ainda mergulhado em meditação; e a fantasmagoria dos dentes mantinha ainda a sua terrível ascendência sobre mim, como se flutuasse, com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes e sombras mutáveis do quarto. Por fim, um grito de horror e desalento partiu os meus sonhos; e, em seguida, após uma pausa, escutei o som de vozes assustadas, entremeadas de lamentos de tristeza, ou de dor. Levantei-me do assento e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi na antecâmara, em pé, uma criada que, em pranto, disse-me que Berenice – não existia mais. Tivera um ataque de epilepsia pela manhã, e agora, ao cair da noite, a cova estava pronta para a sua ocupante e já se haviam completadas as preparações para o enterro. Com o coração pesaroso, ainda que relutante e oprimido pelo medo, dirigi-me para o quarto de dormir da falecida. Era um quarto grande, muito escuro e a cada passo dado naquele sombrio interior defrontava-me com aprestos do enterro. Os cortinados do leito, assim me disse um criado, recobriam o caixão, e neste, sussurrou-me ele, se achava tudo o que restou de Berenice. Teria alguém me perguntado se eu não queria olhar o corpo? Não vi ninguém mexer os lábios, entretanto a pergunta havia sido feita e o eco das sílabas ainda ressoava no quarto. Era impossível recusar e com uma sensação de asfixia avancei vagarosamente na direção do leito. Ergui de leve as negras dobras dos cortinados. Ao largá-las, elas caíram sobre meus ombros e, ocultando-me assim dos vivos, envolveram-me numa estrita comunhão com o cadáver. A atmosfera se impregnara inteiramente do odor da morte. O cheiro peculiar do caixão me fazia mal e cheguei a supor que emanações deletérias já exalavam do corpo. Teria dado mundos para fugir dali – voar para longe da influência perniciosa daquele ambiente mortuário – respirar uma vez mais o ar puro dos céus eternos. Entretanto não tinha mais forças para mover-me – meus joelhos tremiam – e eu fiquei plantado ali, a olhar fixamente aquele corpo rígido que jazia estendido no escuro caixão aberto. Deus do céu! – seria possível? Seria o meu cérebro que desvairava – ou teria sido na verdade o dedo da morta que se mexera na mortalha que a envolvia? Gelado por indizível pavor lentamente dirigi o olhar para o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado um lenço ao redor do queixo, mas, não sei como, ele se desprendera. Os lábios lívidos estavam retorcidos numa espécie de sorriso, e, através dessa lúgubre moldura, uma vez mais cintilaram diante de mim, como palpável realidade, os dentes de Berenice, brancos, nítidos, funéreos. Afastei-me dali em convulsão, sem dizer uma só palavra, precipitando-me como um louco para fora daquele lugar de morte, horror e mistério.

Encontrei-me outra vez na biblioteca e de novo sentado ali sozinho. Parecia acordar novamente de um sonho confuso e excitante. Eu sabia que já era meia-noite e também que Berenice acha-se enterrada desde o pôr do sol. Mas do atroz período intermediário eu não tinha uma lembrança positiva, ou pelo menos uma compreensão definida. No entanto a vaga memória disto estava impregnada de horror – horror mais horrível por ser vago, e terror mais terrível pela ambiguidade. Era uma página assombrosa no registro de minha existência, escrita completamente com indistintas, e horrendas e ininteligíveis recordações. Eu me esforçava por decifrá-la, mas em vão – enquanto, de vez em quando, como o espírito de um som esquecido, o lancinante e estridente grito de uma voz de mulher parecia retinir em meus ouvidos. Eu havia cometido alguma ação – mal qual era? E os ecos do aposento repetiam “o que era”? 

Sobre a mesa ao meu lado ardia uma lâmpada, e perto dela achava-se uma pequena caixa de ébano. Não havia nenhuma característica notável nessa caixa e já a tinha visto antes muitas vezes, pois pertencia ao médico da família. Mas como ela viera parar ali sobre a minha mesa, e por que eu estremecia ao vê-la? Essas coisas de modo algum eram dignas de importância, e meus olhos finalmente pousaram sobre as páginas abertas de um livro, e sobre as sentenças que nelas se salientavam. Sentenças de palavras estranhas, mas simples, do poeta Ebn Zaiat: Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas. Por que afinal, enquanto eu me concentrava na leitura, os meus cabelos se eriçaram até as pontas e o sangue de meu corpo congelou-se nas veias?

Alguém bateu de leve à porta da biblioteca, e, pálido como o habitante de um túmulo, um criado entrou na ponta dos pés. Seu olhar mostrava-se desvairado pelo terror e ele me falou numa voz trêmula, áspera e muito baixa. Que dizia ele? – ouvi algumas frases truncadas. Falou de um grito lancinante que perturbara o silêncio da noite – da reunião das pessoas da casa – das buscas na direção do som – e daí o tom de sua voz pareceu crescer, vibrante e distinto, quando ele me sussurrou a respeito de um túmulo violado – de um corpo desfigurado deixado à margem da cova com a sua mortalha, e, no entanto, ainda respirando, ainda palpitante, ainda vivo!

Apontou para minhas roupas – estavam enlameadas, sujas de sangue coagulado. Eu não falei nada e ele segurou-me as mãos com cuidado – elas estavam marcadas com arranhões de unhas humanas. Dirigiu minha atenção para um certo objeto encostado à parede – olhei-o por alguns instantes – era uma pá. Com um grito saltei para a mesa e agarrei a caixa de ébano que estava ali. Mas não consegui abri-la; escorregou de minhas mãos trêmulas e caiu pesadamente sobre o chão, fazendo-se em pedaços. Dela, com um som chocalhante, rolaram alguns instrumentos de cirurgia dentária, misturados a trinta e duas pequenas peças, brancas, parecendo de marfim, que se espalharam pelo assoalho.

 

 

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