Por residir junto ao mar boreal, o feiticeiro Evagh costumava ver muitos portentos inesperados no verão. O sol ardia gélido sobre Mhu Thulan, pendente de um firmamento límpido e desbotado como gelo. Ao entardecer a aurora se estendia do horizonte ao zênite, como uma cortina de um palácio dos deuses. Débeis e raras eram as papoulas e pequenas as anêmonas nos vales que entremeavam os rochedos além da casa de Evagh, e os frutos de seu jardim murado eram pálidos por fora e verdes por dentro. Ele também contemplava durante o dia a fuga inesperada de grandes multidões de aves, que se dirigiam para o sul a partir das ilhas ocultas além de Mhu Thulan, e à noite ele ouvia o clamor perturbador de outras multidões passageiras. E sempre, contra o vento ruidoso ou o rugido da maré, ele escutava o sussurro estranho das vozes dos países de inverno perene. Mas Evagh estava preocupado com esses portentos, tanto quanto os rudes pescadores das margens da baía abaixo de sua casa. Sendo um mestre completo em todo sortilégio e um vidente de coisas remotas e futuras, ele fez uso de suas artes em um esforço para adivinhar o seu significado, mas havia uma nuvem sobre seus olhos durante o dia e uma escuridão dificultava-lhe a visão quando tentava buscar o esclarecimento em sonhos. Seus mais astutos horóscopos resultaram em nada, seus familiares estavam quietos ou lhe respondiam ambiguamente, e havia confusão em toda a sua geomancia, hidromancia ou aruspicações. E Evagh teve a impressão de que um poder desconhecido trabalhava contra si, zombando de seus esforços e tornando-os impotentes de uma forma tal que sua feitiçaria nunca fora derrotada. E Evagh soube, por meio de sinais perceptíveis somente aos magos, que tal poder era maligno e sua aproximação era uma desgraça para os homens. Dia após dia, através do verão, os pescadores saíram em suas barcas de salgueiro e couro, lançando as redes. Mas delas só saíam peixes mortos, que pareciam fulminados por fogo ou por um frio extremo, e também monstros vivos, de espécies que mesmo os mais velhos capitães nunca haviam visto, coisas de três cabeças, com caudas ou nadadeiras horrendas, coisas amorfas e descoloridas que se dissolviam em líquidos fétidos e escorriam por entre os nós, ou coisas sem cabeça que pareciam luas inchadas, com raios verdes e gelados em volta, ou coisas com olhos leprosos e envoltas em uma baba grossa e pegajosa. Então, vinda do horizonte do norte, aonde os navios de Cerngoth costumavam ir labutar entre as ilhas do Ártico, surgiu uma galera à deriva, com remos inertes e um leme que girava sem destino. A maré a encalhou entre os botes dos pescadores, que não se aventuravam mais no mar, mas se refugiavam nas areias logo abaixo do rochedo onde tinha Evagh a sua casa. Percorrendo a galera, presas de espanto e medo, os pescadores contemplaram seus remadores imóveis nos assentos e o capitão ao leme. Mas as mãos e faces de todos estavam duras como ossos e brancas como a pele de um leproso, e as pupilas de seus olhos abertos tinham desbotado curiosamente, sendo indistinguíveis do branco, e havia uma horrível brancura neles, como uma poça profunda que congelou até o fundo. E o próprio Evagh, mais tarde, também contemplou a tripulação da galera e refletiu muito a respeito da importância de tal prodígio. Os pescadores tiveram nojo de tocar aqueles mortos e começaram a murmurar que havia uma maldição no mar, sobre todas as coisas e pessoas que o percorriam. Mas Evagh, achado que os corpos apodreceriam ao sol e trariam pestilência, os comandou a erguer uma pilha de destroços em torno da galera, e quando a pilha se erguera acima da amurada, escondendo da visão os remadores mortos, ateou-lhe fogo com suas próprias mãos. A pilha queimou muito alto, a fumaça subiu escura como uma nuvem de tempestade e foi soprada pelo vento para além das torres de Evagh, por entre os rochedos. Mas depois, quando o fogo se apagou, os corpos dos remadores foram vistos sentados entre as brasas e os seus braços ainda estavam estendidos na posição de remar e seus dedos estavam ainda cerrados, embora os remos tivessem se desfeito em carvões e cinzas. E o capitão da galera ainda estava de pé em seu lugar, embora o leme queimado estivesse caído a seus pés. Nada fora consumido senão as vestes dos corpos marmóreos e eles brilhavam como estátuas ao luar por entre os pedaços de madeira enegrecidos pelas chamas, sem qualquer mancha que lhes tivesse sido causada pelo fogo. Os pescadores viram nisso um portento maligno e ficaram apavorados, e todos fugiram logo para os rochedos mais altos. Somente ficaram com Evagh dois de seus servos, o garoto Ratha e o velho mordomo Ahilidis, que haviam, ambos, testemunhado muitas de suas conjurações e estavam, portanto, acostumados aos sinais da magia. Com estes dois ao seu lado, o feiticeiro esperou que os carvões esfriassem. As brasas logo escureceram rapidamente, mas ainda subiu fumaça por toda a tarde e o anoitecer, e ainda estavam quentes demais para que um humano as pisasse quando amanheceu. Então Evagh chamou os seus servos para que buscassem água do mar em potes e a despejassem sobre as cinzas e os carvões. Depois que a fumaça e o chiado terminaram ele subiu a bordo e se aproximou dos cadáveres pálidos. Perto deles ele sentia um grande frio, tal como emanaria de um gelo ártico, e o frio começou a doer em suas mãos e orelhas e a atingir-lhe agudamente através do manto de pele. Chegando ainda mais perto ele tocou um dos corpos com a ponta de seu dedo e este, embora apenas ligeiramente pressionado e logo afastado, ficou queimado como por uma chama. Evagh ficou muito assustado, pois a condição dos cadáveres era algo que lhe era até então desconhecido e em toda a sua ciência de magia não havia nada que lhe pudesse esclarecer. Ele supôs que um feitiço fora lançado sobre os mortos, um sortilégio do tipo que os pálidos demônios polares talvez conheçam, ou as bruxas geladas da lua podem criar em suas cavernas de neve. E ele logo concluiu que era melhor se afastar, para o caso de o feitiço ter efeito sobre outros que não os mortos.
A Vinda do verme branco, parte 2
De volta à sua casa antes da noite, queimou junto a cada porta e janela as resinas que são mais ofensivas aos demônios do norte, e em cada ângulo por onde um espírito pudesse entrar ele situou um de seus familiares para guardar contra a intrusão. Depois, enquanto Ratha e Ahilidis dormiam, ele pesquisou com cuidado diligente nos escritos de Pnom, nos quais estão coletados muitos exorcismos poderosos. Mas o tempo todo, enquanto lia para seu conforto os velhos autógrafos, ele se lembrava melancolicamente dos ditos do profeta Lith, que nenhum homem entendera : Há Um que habita no lugar do frio extremo, e Um que respira onde ninguém mais conseguiria ter ar. Em dias que virão Ele aparecerá entre as ilhas e cidades dos homens, trazendo consigo a maldição branca do vento que sopra em sua residência. Embora um fogo ardesse em sua câmara, revestida de grossos pinheiros e terebintos, um calafrio mortal pareceu tomar o ar com o anoitecer. Então, quando Evagh, preocupado, retirou dos pergaminhos a sua atenção e viu que as chamas eram altas como se não precisassem de mais lenha, ele ouviu o agito súbito de um grande vento cheio dos gritos assustadores de aves marinhas e de aves terrestres que se arrastavam com asas inúteis, e acima de tudo uma risada estrondosa de vozes diabólicas. O vento do norte bateu loucamente contra suas torres quadradas e pássaros foram atirados como folhas mortas de outono contra suas janelas de madeira sólida, demônios pareciam fender e empurrar as paredes de granito. Embora as portas estivessem fechadas e as janelas, firmemente trancadas, uma lufada gélida circulou a mesa onde Evagh se sentara, arrancando de seus dedos os largos pergaminhos de Pnom e fazendo a chama da lâmpada bruxulear. Em vão ele lutou para lembrar, com os pensamentos amortecidos, aquele contrafeitiço que é o mais eficaz contra os espíritos do quarto boreal. Então, estranhamente, pareceu que o vento diminuiu, deixando pela casa uma quietude imensa. O sopro gelado desapareceu, a lâmpada e a lareira queimavam com firmeza e algum calor lentamente retornou aos ossos enregelados de Evagh. Então ele percebeu que uma luz brilhava além das janelas de sua câmara, como se uma lua tardia tivesse nascido além dos rochedos. Mas Evagh sabia que a lua estava no início do quarto crescente, e se punha com a maré. Parecia, também, que a luz brilhava do norte, pálida e frígida como um fogo gelado, e chegando à janela ele viu um grande raio que atravessava todo o mar, parecendo vir do polo oculto. Àquela luz, as rochas eram mais pálidas que o mármore, a areia era mais branca que o sal e as cabanas dos pescadores eram mais como túmulos caiados. O jardim murado de Evagh estava ocupado pelo raio de luz e todo o verde tinha sumido de sua folhagem, todas as flores tinham se tornado como flocos de neve. E o raio incidia penetrantemente sobre as paredes inferiores de sua casa, mas deixava ainda na escuridão a parede da câmara superior de onde ele o observava. Ele pensou que o raio saía de uma nuvem pálida que surgira sobre a linha do mar, ou talvez de um pico nevado que se erguera em direção ao céu durante a noite, mas não teve certeza. Observando, viu que a luz se erguia mais alto até os céus, mas não sobre sua parede. Tentando em vão entender o significado de tal mistério, ele teve a impressão de ouvir no ar ao redor uma voz doce e mágica. Falando em uma língua que ele não conhecia, a voz pronunciou um encantamento de sono. E Evagh não pode resistir ao encantamento, sobre ele caiu uma dormência como o sono a que sucumbe o sentinela cansado em um lugar gelado. Acordando assustado ao amanhecer, ele se levantou do chão duro onde estivera deitado e contemplou uma estranha maravilha. Pois eis que na baía estava um iceberg mais alto que qualquer outro que os navios haviam avistado em todas as suas navegações do norte, e mais alto que os citados pelas lendas das obscuras ilhas da Hiperbórea. Ele preenchia o porto de lado a lado, e subia a alturas incomensuráveis, com escarpas empilhadas e precipícios em degraus, e seus pináculos eram como torres, mais altos que as da casa de Evagh, que ficava sobre uma montanha. Era mais alto que o temido monte Achoravomas, que vomita rios de chamas e pedras líquidas que fluem incessantemente pela Terra de Tscho Vulpanomi rumo ao continente austral. Era mais íngreme do que a montanha Yarak, que marca o lugar do polo boreal e dele recaía uma lânguida cintilação sobre o mar e a terra. Mortífera e terrível era a cintilação e Evagh soube que esta era a luz que vira na escuridão. Ele mal podia inspirar por causa do frio que estava no ar e a luz do imenso iceberg feria seus olhos com uma intensidade excessiva. Mesmo assim ele percebeu uma coisa estranha : os raios daquela cintilação recaíam indiretamente em ambos os lados de sua casa, e que as câmaras inferiores, onde Ratha e Ahilidis dormiam, não eram mais tocadas pelo raio como durante a noite, e que sobre sua própria csa não havia mais nada a não ser o sol matinal e as sombras do alvorecer. No litoral abaixo ele via os carvões da galera encalhada, e entre eles os brancos cadáveres inconsumíveis pelo fogo. E pelas areias e rochas os pescadores estavam deitados ou de pé em posturas rígidas e imóveis, como se tivessem saído de seus esconderijos para contemplar o raio pálido e tivessem sido abatidos por um sono mágico. E toda a margem da baía, até o jardim de Evagh, até mesmo até a soleira de sua porta, era como um lugar totalmente coberto por uma geada espessa. Outra vez ele se lembrou do dito de Lith, e foi com muito receio que desceu ao térreo. Lá estavam o garoto Ratha e o velho Ahilidis, inclinados junto à janela norte, com as faces voltadas para a luz. Rígidos eles permaneciam, com olhos muito abertos e um pálido terror em suas faces, sobre eles estava a morte branca da tripulação da galera. E ao se aproximar deles o feiticeiro foi detido pela terrível frieza que o atingiu, proveniente de seus corpos
A vinda do verme branco, parte 3
Ele teria fugido da casa, sabendo que sua magia era totalmente ineficaz contra aquilo. Mas compreendeu que a morte estava na exposição direta aos raios do iceberg e que se deixasse a casa ele forçosamente entraria naquela luz fatal. E também compreendeu que ele só, entre os que viviam naquele trecho de litoral, tinha sido excluído da morte. Não podia supor a razão de sua exceção, mas concluiu por fim que era melhor permanecer paciente e sem medo, à espera do que lhe devesse acontecer. De volta à sua câmara ele se ocupou de várias conjurações. Mas os seus familiares tinham desaparecido durante a noite, abandonando os ângulos em que ele os postara, e nenhum espírito, humano ou demoníaco, deu resposta às suas perguntas. E de nenhuma forma conhecida dos magos ele conseguiu aprender coisa alguma sobre o iceberg ou adivinhar um mínimo de seu segredo. Então, enquanto trabalhava com seus truques inúteis, sentiu no rosto o sopro de um vento que não era de ar, mas de um elemento mais sutil e raro, frio como o éter lunar. Sua respiração o abandonou em agonia inexprimível e ele caiu ao chão em uma espécie de sono que era parecido com a morte. Nesta letargia ele teve a vaga impressão de ouvir vozes que pronunciavam encantamentos desconhecidos. Dedos invisíveis que o tocaram com um frio dolorido, e foi imerso em uma radiância estéril que oscilava, como a de uma maré que vai e vem sem parar. Esta radiância era intolerável a todos os seus sentidos, mas ela aumentava devagar, com picos sempre breves, e logo seus olhos e sua carne se acostumaram a suportá-la. Recaía sobre si, com toda força, a luz do iceberg, entrando pela janela norte, e parecia que um grande Olho o observava através dela. Ele teria se erguido para enfrentar tal Olho, mas o sono o subjugava com uma espécie de paralisia. Depois disso ele dormiu novamente por um tempo. Ao acordar, encontrou de volta a seus membros a força e a agilidade que lhes faltara antes. A estranha luz ainda estava sobre si, preenchendo toda a sua câmara, e ao contemplar o exterior ele testemunhou uma nova maravilha. Pois eis que seu jardim e as rochas e as areias da praia além não eram mais visíveis. Em seu lugar haviam suaves leitos de gelo em torno de sua casa, e altos píncaros que se erguiam como torres sobre as ameias de uma fortaleza. Além dos abismos de gelo ele via um mar que parecia remoto e raso, e além do mar havia um litoral baixo e vago. O terror lhe assaltou então, pois ele reconheceu em tudo isso a ação de uma feitiçaria onipotente e além do poder de todos os magos mortais. Pois era evidente que sua alta casa de granito não estava mais na costa de Mhu Thulan, mas depositada sobre alguma parte alta do iceberg. Tremendo ele se ajoelhou e orou aos Antigos, que vivem secretamente em cavernas subterrâneas ou habitam sob o mar ou nos espaços ultraterrenos. E enquanto orava ouviu baterem com força à porta de sua casa. Com muito medo e espanto ele desceu abriu os portões. Diante de si estavam dois homens, ou criaturas que tinham aparência humana. Ambos tinham fisionomias estranhas e peles lustrosas e vestiam mantas de tecidos bordados de runas como as que só os magos vestiriam. Essas runas eram rústicas e incompreensíveis, mas quando os homens lhe falaram ele entendeu um pouco do que diziam, que era um dialeto das ilhas Hiperbóreas. — Servimos Àquele cuja vinda foi predita pelo profeta Lith — disseram. Ele veio de espaços além dos limites do norte, em sua cidadela flutuante, a montanha de gelo Yikilth, para viajar pelos oceanos mundanos e cobrir de gelado esplendor os pequenos povos da humanidade. Ele nos poupou dentre os habitantes da grande ilha de Thulask e nos trouxe para navegarmos com ele sobre Yikilth. Ele temperou a nossa carne ao rigor de sua morada, e tornou respirável para nós o ar que nenhum mortal poderia inspirar. A ti também ele poupou e aclimatou com seus feitiços ao frio e ao éter que estão por toda Yikilth. Salve, ó Evagh, em quem reconhecemos grande magia por este sinal : pois apenas os mais poderosos entre os magos foram assim escolhidos e salvos. Evagh foi dolorosamente surpreendido, mas vendo que passara a tratar com homens que eram como ele próprio, passou a questionar mais atentamente os dois magos de Thulask. Eles se chamavam Dooni e Ux Loddhan e eram sábios nas tradições dos deuses antigos. O nome dAquele a quem serviam era Rlim Shaikorth, e vivia no mais alto dos cumes da montanha de gelo. Nada disseram a Evagh sobre as propriedades de Rlim Shaikorth e sobre seu próprio serviço a tal ser eles juraram que consistia somente da adoração que se dá a um deus, adicionada do repúdio de todo laço que antes os ligara à humanidade. E disseram a Evagh que deveria seguir-lhes até Rlim Shaikorth, executar o apropriado rito de obediência e aceitar o compromisso de alienação definitiva. Então Evagh foi com Dooni e Ux Loddhan e estes o conduziram a um grande cume de gelo que se erguia sem se derreter diante do sol pálido, predominando sobre os demais no topo plano do iceberg. O pináculo era oco. Subindo por dentro dele em escadarias de gelo eles chegaram finalmente à câmara de Rlim Shaikorth, que era um domo semiesférico com um bloco arredondado ao meio formando um divã. E sobre esse divã se encontrava o ser cujo advento o profeta Lith predissera tão obscuramente.
A Vinda do verme branco, parte 4
Ao ver tal entidade a pulsação de Evagh se deteve por um instante, tal o terror e logo a seguir do terror as suas entranhas se revoltaram dentro dele, tal o excesso de nojo. Em todo o mundo nada havia que pudesse ser comparado à asquerosidade de Rlim Shaikorth. De alguma forma ele tinha a semelhança de um gordo verme branco, mas seu volume era maior que o de um elefante-marinho. Sua cauda espiralada era tão grossa quanto as dobras medianas de seu corpo e a sua frente se erguia do divã na forma de um disco branco sobre o qual estavam impressos vagamente traços que não pertenciam a nenhuma fera da terra ou criatura do mar. Nesse disco havia uma boca pálida e sem língua, curvada imundamente de lado a lado, abrindo e fechando sem parar até o bucho. As órbitas dos olhos de Rlim Shaikorth ficavam muito próximas, entre suas narinas rasas, e eram vazias, mas nelas apareciam momentaneamente glóbulos de matéria da cor do sangue e no formato de olhos, mas eles sempre se partiam e caíam diante do divã. E do chão gelado do domo se erguiam duas massas como estalagmites, rubras e escuras como sangue congelado, que haviam sido criadas pelo incessante gotejar de tais glóbulos. Dooni e Ux Loddhan se prostraram diante do ser e Evagh achou por bem seguir o seu exemplo. Curvado sobre o gelo ele ouvia as gotas vermelhas caindo com o ruído de lágrimas pesadas, e então, no domo acima de si, teve a impressão de ouvir uma voz, e a voz era como o som de uma catarata oculta em uma geleira escavada por muitas cavernas. — Contempla, ó Evagh, — disse a voz — eu te preservei do destino de teus semelhantes e te tornei como os que habitam o reino do frio e inalam o vácuo sem ar. Sabedoria inefável terás também conhecimento além do que os mortais podem conquistar se concordares em apenas adorar-me e tornar-te meu servo. Comigo viajarás por entre os reinos do norte e passarás por entre as ilhas verdes do sul e verás a morte branca cair sobre todos a partir da luz de Yikilth. Nossa vinda tratará o gelo eterno a seus jardins e porá sobre a carne de seus povos o selo do abismo rigoroso que apagará cada uma das mais ardentes estrelas e leva geada ao coração dos sóis. Tudo isto testemunharás, sendo um dos senhores da morte, supremo e imortal, e no fim tu retornarás comigo àquele mundo além do último polo, que é o meu império. Pois eu sou aquele cuja vinda nem mesmo os deuses podem obstar. Então, vendo que não tinha escolha, Evagh se comprometeu espontaneamente a adorar e servir o verme pálido. Sob as instruções de Dooni e Ux Loddhan ele desempenhou o rito de sete partes que faz pouco sentido narrar aqui, e pronunciou os três votos de inexprimível alienação. Depois, por muitos dias e noites, ele navegou com Rlim Shaikorth pela costa de Mhu Thulan. Estranha foi a maneira de tal viagem, por parecer que o grande iceber era guiado pela feitiçaria do verme, prevalecendo sempre contra o vento e a maré. E sempre, dia e noite, como os raios de um farol da morte, o frio esplendor atingia tudo até a grande distância de Yikilth. Orgulhosas galeras eram ultrapassadas enquanto fugiam para o sul e as suas tripulações eram abatidas nos remos e, às vezes, navios eram capturados e incorporados aos novos bastiões de gelo que se formavam diariamente em torno da base daquela montanha sempre crescente. Os belos portos hiperbóreos, cheios de tráfego marinho, foram paralisados pela passagem de Rlim Shaikorth. Quietas ficaram suas ruas e seus cais, quietas as cargas em suas baías depois que a luz pálida veio e se foi. Os raios chegavam profundamente ao interior, levando aos jardins e campos o murchar de um inverno transártico, e as florestas congelaram e os animais que as percorriam se tornaram também como mármore, de sorte que homens que passaram por aquele lugar muito tempo depois ainda achavam alces, ursos e mamutes ainda de pé em posturas vivas. Mas, vivendo sobre Yikilth, o feiticeiro Evagh estava imune à morte gelada. Sentado em casa ou caminhando pelo iceberg ele não sentia nenhum frio mais intenso que o que se sente nas sombras em um dia de verão. Então havia, além de Dooni e Ux Loddhan, os feiticeiros de Thulask, outros cinco magos que seguiam a mesma viagem com Evagh, também escolhidos de Rlim Shaikorth. Eles também haviam sido temperados ao frio por Yikilth e suas casas também haviam sido transportadas para o iceberg por um encantamento desconhecido. Eram homens estrangeiros rudes, chamados de polarianos, vindos de ilhas ainda mais próximas do polo que a grande Thulask, e Evagh nada podia entender de seus modos, sua feitiçaria lhe era estranha e a sua fala era ininteligível, sendo tampouco conhecida dos thulaskianos. Diariamente os oito magos achavam sobre suas mesas todas as provisões necessárias ao sustento humano, embora não soubessem por que meio era suprida. Todos se uniam na adoração ao verme branco e todos, ao que parecia, estavam razoavelmente contentes com seu papel e ansiosos pelo poder e pelo conhecimento extraterrenos que o verme lhes prometera. Mas Evagh estava intranquilo de coração e se revoltava em segredo contra sua servidão a Rlim Shaikorth. Ele contemplava com repulsa o destino cruel que recaía de Yikilth sobre adoráveis cidades e frutíferos litorais. Com raiva ele viu a destruição de Cerngoth, a florida, e a paralisia boreal que desceu sobre as ruas congestionadas de Leqquan, e a gelo que queimou com uma branquidão repentina os pátios e hortas do vale litorâneo de Aguil. E a tristeza estava em seu coração ao lembrar os barcos de pesca e as birremes mercantes ou de guerra que flutuavam sem comando depois de cruzarem com Yikilth.
A vinda do verme branco, parte 5
O grande iceberg seguia sempre para o sul, levando seu inverno letal a terras onde o sol de verão passava alto. E Evagh mantinha-se em silêncio, seguindo de todas as formas o costume de Dooni e Ux Loddhan e dos outros. Em intervalos regulados pelo movimento das estrelas circumpolares os oito magos subiam à alta câmara em que habitava perpetuamente Rlim Shaikorth, meio enrolado em seu divã de gelo. Lá, em um ritual cujas cadências correspondiam à queda das lágrimas em forma de olhos que eram choradas pelo verme, e com genuflexões cronometradas pelo abrir e fechar de sua boca, eles davam a Rlim Shaikorth a adoração necessária. Às vezes o verme estava em silêncio, e às vezes lhes falava, renovando vagamente as promessas que fizera. E Evagh soube dos outros que o verme se mantinha adormecido por um tempo a cada lua nova e que era só nessa época que as lágrimas sanguíneas deixavam de cair e a boca se furtava a abrir e fechar alternadamente. Na terceira repetição dos ritos de adoração eis que apenas sete dos magos foram à torre. Evagh, contando seu número, percebeu que o homem que faltava era um dos cinco estrangeiros. Depois ele perguntou sobre isso a Dooni e Ux Loddhan e gesticulou inquisitivamente aos quatro nortistas restantes, mas parecia que o destino do feiticeiro ausente era um mistério para todos. Nada sobre ele se ouviu ou se soube desde então, e Evagh, pensando longa e cuidadosamente, ficou um pouco inquieto, pois durante a cerimônia na câmara da torre lhe parecera que o verme estava mais gordo e roliço do que em qualqurer momento anterior. Cuidadosamente ele perguntou que tipo de nutrição era solicitada por Rlim Shaikorth. Sobre isso havia grande dúvida e discórdia, pois Ux Loddhan afirmava que o verme não se alimentava de nada menos raro que os corações de ursos brancos do Ártico, enquanto Dooni jurava que o seu alimento correto era fígado de baleia. Mas, pelo que sabiam, o verme não comera durante sua viagem sobre Yikilth, e ambos asseveraram que os intervalos entre suas refeições eram mais longos que os de qualquer criatura terrestre, não se contando em horas ou dias, mas em anos inteiros. O iceberg ainda seguia seu curso, mais vasto e mais prodigioso sob o sol e outra vez, na hora apontada pelas estrelas, que era a véspera de cada terceiro dia, os magos se reuniram na presença de Rlim Shaikorth. Para a perturbação de todos o seu número era somente seis, sendo o mago perdido um outro dos estrangeiros. E o verme crescera ainda mais em tamanho, sendo o crescimento visível no intumescimento de todo o seu corpo, da cabeça à cauda. Vendo em tais circunstâncias um mau augúrio, os seis fizeram medrosas súplicas ao verme, em todas as suas línguas, e lhe imploraram que lhes dissesse o destino de seus companheiros ausentes. E o verme respondeu, e a sua fala era inteligível por Evagh, Ux Loddhan, Dooni e pelos três nortistas, cada um pensando que ele lhes falara em sua língua nativa. — Este assunto é um mistério a respeito do qual recebereis esclarecimento no momento certo. Saibam disso : os dois que desapareceram ainda estão presentes e compartilharão, tal como vós, do conhecimento ultramundano e do império que eu, Rlim Shaikorth, lhes prometi. Posteriormente, quando tinham já descido da torre, Evagh e os dois thulaskianos debateram a interpretação desta resposta. Evagh insistia que o significado era sinistro, pois verdadeiramente os seus companheiros ausentes estavam presentes apenas na barriga do verme, mas os outros sustentaram que os dois haviam sofrido uma transformação mais mística e estariam elevados além da visão e da audição humana. A partir de então eles começaram a se preparar, com orações e austeridade, à espera de uma apoteose sublime que lhes chegaria quando fosse sua hora. Mas Evagh ainda estava receoso, não confiava mais nos juramentos equívocos do verme e a dúvida permanecia nele. Buscando esclarecer sua dúvida e talvez achar uma pista dos polarianos desaparecidos, ele procurou por todo o grande iceberg, em cujas ameias sua própria casa e as dos outros magos estavam fincadas, tal como pequenas cabanas de pescadores no alto de rochedos oceânicos. Nesta busca os outros não o acompanhariam, receosos de recair no desfavor do verme. De abismo a abismo em Yikilth ele circulou sem obstáculos, como se estivesse em um amplo planalto com picos e aclives e ele subiu perigosamente até as escarpas mais altas e desceu às mais profundas gretas e cavernas onde o sol não chegava e não havia outra luz que do luzir estranho daquele gelo extraterreno. Incorporados nessas paredes, como conchas nas camadas de rochas mais profundas, ele viu habitações tais que o homem nunca construíra e naves que pertenceriam a outras eras ou mundos, mas em nenhum lugar ele pode detectar a presença de qualquer criatura viva, e nenhum espírito ou sombra deu resposta às evocações necromânticas que ele pronunciou ocasionalmente enquanto percorria os abismos e câmaras. De forma que Evagh ainda estava apreensivo com a traição do verme e resolveu permanecer em vigília na noite precedente à celebração seguinte dos ritos de adoração, e ao cair essa noite ele se assegurou de que todos os outros magos estavam em suas mansões individuais, em número de cinco. E tendo se asseverado disso, começou a vigiar sem distração a entrada da torre de Rlim Shaikorth, que era claramente visível de sua própria janela. Estranho e gélido era o brilho do iceberg no escuro, pois uma luz como a de estrelas congeladas refulgia continuamente no gelo. Uma lua recentemente cheia se erguia ainda cedo dos mares orientais. Mas Evagh, mantendo vigília em sua janela até a meia-noite, viu que nenhuma forma emergiu daquela torre alta, e nenhuma entrou lá. À meia-noite lhe sobreveio uma súbita sonolência, tal como a sentida por alguém que bebeu um vinho opiáceo, e ele não pode sustentar sua vigília mais, recaindo em um sono profundo e ininterrupto pelo resto da noite. No dia seguinte havia apenas quatro magos reunidos no domo de gelo para render homenagem a Rlim Shaikorth. E Evagh percebeu que mais dois dos estrangeiros, homens de estatura e peso ainda mais escassos que os de seus companheiros, estavam faltando.
A vinda do verme branco, parte 6
Um a um, nas noites precedentes à cerimônia de adoração, os companheiros de Evagh sumiram. O último polariano foi o seguinte, e então eis que somente Evagh, Ux Loddhan e Dooni foram à torre, depois Evagh e Ux Loddhan foram sozinhos. O terror aumentava diariamente em Evagh, pois ele sentia que a sua própria vez estava próxima e ele teria pulado de uma das rampas mais altas de Yikilth até o mar se Ux Loddhan, ao perceber sua intenção, não lhe tivesse advertido que nenhum homem poderia sair de lá e viver outra vez sob o calor do sol e respirar ar terreno, depois de ter sido habituado ao frio e ao fino éter. E Ux Loddhan, ao que parecia, estava totalmente alheio ao seu próprio destino e ansioso para para perceber o significado esotérico do volume crescente do verme branco e do desaparecimento dos magos. Então, quando a lua diminuíra e escurecera totalmente, eis que Evagh compareceu diante de Rlim Shaikorth, com infinito receio e passos lentos e enojados. E ao entrar no domo, mantendo os olhos baixos, ele se viu o único adorador. Uma paralisia de medo o subjugava enquanto ele jurava obediência e ele mal teve coragem de erguer os olhos e contemplar o verme. Mas tão logo começou a executar os genuflexões costumeiros ele percebeu que as lágrimas vermelhas de Rlim Shaikorth não mais caíam nas estalagmites violáceas, nem havia mais o som que o verme fazia ao abrir e fechar perpetuamente a sua boca. E arriscando olhar para cima, Evagh contemplou o corpo abominavelmente inchado do monstro, cuja largura era tal que ultrapassava as bordas do divã. E viu que a boca e as órbitas de Rlim Shaikorth estavam fechadas como se dormisse e então se lembrou dos magos de Thulask que lhe haviam dito que o verme dormia um tempo durante a lua nova, o que era algo de que se esquecera temporariamente por causa do medo extremo e da apreensão que sentira. Então Evagh ficou dolorosamente confuso, pois os ritos que aprendera de seus companheiros somente podiam ser executados apropriadamente quando as lágrimas de Rlim Shaikorth caíam e sua boca abria e fechava em alternância regular. Ninguém lhe instruíra quais ritos eram devidos e adequados durante o sono do verme. Presa de grande dúvia ele disse suavemente : — Estás desperto, ó Rlim Shaikorth ? Em resposta ele pareceu ouvir uma multidão de vozes que saíam obscuramente da massa pálida e túmida diante de si. O som das vozes era estranhamente abafado, mas entre elas se podia distinguir os sotaques de Dooni e Ux Loddhan, e havia um denso murmúrio de palavras estrangeiras que Evagh reconheceu como a fala dos cinco polarianos. E abaixo destas ele captou ou pareceu captar, inumeráveis outros tons que não eram os de vozes de homens ou feras, nem os sons emitidos por demônios terrestres. E as vozes se ergueram e clamaram, como as de um bando de prisioneiros acorrentados em uma masmorra profunda. Então, enquanto ouvia em horror inefável, a voz de Dooni se articulou mais alta que as outras, e o múltiplo clamor e murmúrio cessou, como uma multidão que se cala para ouvir seu próprio porta-voz. E Evagh ouviu a voz de Dooni dizer : « O verme dorme, mas aqueles que ele devorou estão despertos. Terrivelmente ele nos enganou, pois veio a nossas casas à noite, devorando-nos corporalmente, um a um, enquanto dormíamos sob o encantamento que ele lançara. Ele comeu nossas almas tanto quanto nossos corpos, e agora somos realmente parte de Rlim Shaikorth, mas existimos em uma escura e fétida masmorra e quando o verme está acordado não temos consciência própria e ficamos totalmente imersos na essência ultraterrena de Rlim Shaikorth. « Ouça, então, ó Evagh, a verdade que aprendemos em nossa unificação com o verme. Ele nos salvou da morte branca e nos trouxe a Yikilth para esse fim, porque somente nós, entre todos os humanos, feiticeiros de grande conhecimento e habilidade, poderíamos sobreviver à transformação gelada e letal e nos tornarmos respiradores do vácuo e assim adequados, por fim, à alimentação dos que são como Rlim Shaikorth. Grande « Grande e terrível é o verme e o lugar de onde vem e para onde retorna não é para ser imaginado por homens vivos. E o verme é onisciente, exceto que não sabe sobre o despertar daqueles que devorou e sua consciência durante o seu sono. Mas o verme, embora mais antigo que a antiguidade dos mudos, não é imortal e é vulnerável em um particular. Quem aprender a hora e os meios de sua vulnerabilidade e tiver coragem de executar tal ação poderá matá-lo facilmente. E a hora para tal ato é durante seu turno de sono. Então nós lhe imploramos agora, pela fé que temos nos Antigos, que desembainheis a espada que trazes sob teu manto e a mergulheis no lado de Rlim Shaikorth, pois tal é o método para matá-lo. « Somente assim, ó Evagh, o prosseguimento da morte pálida poderá ser obstado e apenas assim podermos nós, teus companheiros em feitiçaria, obter nossa libertação da servidão cega e do encarceramento eterno, e conosco muitos que o verme traiu e devorou em eras passadas e em mundos distantes. E somente fazendo isto tu escaparás da sombria e asquerosa boca do verme, não tendo de habitar para sempre como um fantasma fugidio entre outros fantasmas nas trevas malignas de sua barriga. Mas saiba, porém, que aquele que matar Rlim Shaikorth deverá necessariamente morrer ao fazê-lo.
A vinda do verme branco, parte 7
Evagh, aturdido, interrogou Dooni e foi respondido conforme o que perguntara. E às vezes a voz de Ux Loddhan lhe respondia e às vezes havia murmúrios ininteligíveis que expressavam aqueles outros entre os fantasmas chorosos. Muito Evagh aprendeu sobre a origem e a essência do verme, e aprendeu o segredo de Yikilth e a maneira pela qual Yikilth flutuara dos abismos transárticos para viajar pelos mares da Terra. Sempre, ao ouvir, o seu horror aumentava, ainda que atos de magia negra e conjurações de demônios houvessem por muito tempo endurecido sua carne e sua alma, tornando-o insensível a horrores incomuns. Mas sobre tudo o que ele aprendeu é inadequado falar nesse momento. Por fim se fez silêncio no domo, pois o verme dormia profundamente e Evagh já não tinha o que perguntar ao fantasma de Dooni, e os que estavam presos com Dooni pareciam esperar e vigiar em uma paralisia de morte. Então, sendo um homem de muita firmeza e resolução, Evagh não demorou mais e retirou de sua bainha de marfim a espada de bronze curta, mas bem temperada, que ele sempre carregava junto ao cinturão. Aproximando-se do divã até bem perto ele mergulhou a lâmina na massa intumescida de Rlim Shaikorth. A lâmina entrou fácil, com um movimento de retalhar e rasgar como se tivesse perfurado uma monstruosa bexiga, de forma que ela não se deteve nem mesmo na empunhadura, e todo o braço direito de Evagh foi puxado atrás dela para dentro da ferida aberta. Ele não percebeu nenhum movimento ou inquietação no verme, mas da ferida aberta esguichou uma torrente súbida de matéria negra e líquida, cada vez mais rápido e com mais força, até que a espada foi arrancada do punho de Evagh como por um redemoinho. Muito mais quente que o sangue e fumegante de estranhos vapores e fumaças, o líquido correu sobre a pele de seu braço e molhou suas roupas ao cair. O gele aos seus pés logo ficou coberto, mas o fluido ainda jorrava como de uma inexaurível fonte de podridão, e se espalhava por toda parte em poças e correntes que se juntavam. Evagh teria fugido então, mas o líquido preto, subindo e correndo, estava já nos seus tornozelos quando ele chegou ao topo da escada, e corria por ela abaixo como uma catarata rumo a uma caverna abissal. Mais e mais quente ele se tornava, fervendo e borbulhando, enquanto a corrente se fortalecia e o cercava e puxava como mãos malignas. Ele temeu seguir pelas escadas, mas não havia nenhum lugar no domo onde pudesse subir para refugiar-se. Ele se virou, lutando contra a força do líquido apenas para ficar de pé, e viu vagamente através dos vapores fétidos a massa entronizada de Rlim Shaikorth. O rasgo se abrira prodigiosamente e uma torrente saía dele como as águas de uma barragem rompida, cuspida para a frente em torno do divã, e mesmo assim, como para provar ainda mais a natureza sobrenatural do verme, seu volume ainda não diminuíra. E o líquido negro ainda vinha em uma enchente maligna e subia rodopiante em torno dos joelhos de Evagh, os vapores parecendo tomar a forma de uma miríade de formas fantasmagóricas, que se contorciam obscuramente, se juntando e se separando ao passarem por ele. Então, enquanto cambaleava e sentia náuseas no topo da escada, ele foi subjugado e atirado para a sua morte nos degraus de gelo. Naquele dia, no mar ao leste da média Hiperbórea, as tripulações de certas galeras mercantes contemplaram algo inaudito. Pois eis que, ao se dirigirem para o norte, retornando de distantes ilhas oceânicas com um vento que ajudava o trabalho de seus remos, elas avistaram no fim da tarde um monstruoso iceberg cujos pináculos e cumes pareciam mais altos que montanhas. O iceberg brilhava parcialmente com uma luz estranha, e de seu pináculo mais alto jorrava uma torrente negra e todos os cimos e arcos de gelo abaixo estavam tomados de correntes, cascatas e cataratas do mesmo negrume, que fumegavam como água fervente ao se atirarem no mar, e o mar em torno do iceberg estava turvo e rajado em uma grande extensão, como se lhe houvessem derramado o fluido escuro dos polvos. Os marinheiros tiveram medo de chegar mais perto. Em vez disso, espantados e maravilhados, suspenderam os remos e ficaram contemplando o iceberg. O vento diminuiu de forma que suas galeras ficaram à vista dele durante todo o dia. Eles viram que o iceberg derretia rapidamente, se desfazendo como se um fogo desconhecido o consumisse, e o ar adquiriu um calor estranho, e a água em volta de seus navios ficou morna. Penhasco a penhasco o gelo foi escavado e devorado, e grandes porções caíram com um poderoso estrondo. O píncaro mais alto também desmoronou, mas o negrume ainda jorrava como de uma fonte profunda. Os marinheiros pensaram ver, em certos momentos, que casas flutuavam sobre alguns dos fragmentos desprendidos, mas disso não tiveram certeza por causa dos vapores crescentes. Ao pôr do sol o iceberg tinha sido reduzido à massa de um bloco de gelo comum, mas inda seguia a fonte de negrume que o cobria, ele afundou entre as ondas, e a estranha luz se apagou por fim. Então, como era noite sem lua, ele se perdeu da visão e uma tempestade assomou, soprando fortemente do sul, de forma que ao amanhecer o mar não tinha mais nenhum sinal. Sobre os assuntos relatados acima, muitas e variadas lendas surgiram em Mhu Thulan e todos os reinos extremos da Hiperbórea e seus arquipélagos, até mesmo a ilha sulina de Oszhtror. A verdade não está em nenhuma destas lendas, pois nenhum homem a conheceu até hoje. Somente eu, o feiticeiro Eibon, evocando por necromancia o espectro de Evagh, perdido entre as ondas, aprendi dele a verdadeira história do advento do verme. Eu a escrevi em meu livro omitindo o que é necessário para poupar a sanidade dos frágeis mortais. E os homens lerão este registro, junto de muitas outras tradições mais antigas, em dias futuros, muito depois da vinda e derretimento das grandes geleiras.
Pouco conhecido no meio literário, Clark Ashton Smith nasceu em 13 de janeiro de 1893 em Long Valley, Califórnia (EUA) e faleceu em 14 de agosto de 1961.
Foi escultor, pintor, poenta e autor de contos de fantasia, horror e ficção científica. O escritor chamou atenção, com seus primeiros poemas, de autores já bastante conhecidos como Ambrose Bierce. Autodidata, Smith não conseguiu concluir a escola secundária devido a problemas psicológicos. Por conta da sua habilidosa memória fotográfica conseguiu educar a si mesmo lendo a Enciclopédia Britânica mais de uma vez e todo o dicionário Oxford. Em 1922 recebeu uma carta de H.P. Lovecraft que se mostrava fã de sua escrita, a amizade entre os escritores cresceu e perdurou por 15 anos. A escrita de Smith criou-se no ambiente místico de mundos mágicos, fundindo elementos da ficção científica com fantasia e poesia. Smith foi um dos principais inspiradores de Lovecraft quando o mesmo desenvolveu o ciclo de histórias cósmicas da criatura Cthulhu. A linguagem de Smith é repleta de um vocabulário exótico, científico, mostrando sua habilidade com as palavras rebuscadas retiradas do dicionário, meio pelo qual se educou sozinho na juventude. Os elementos de suas histórias interplanetárias se apoiam mais na fantasia e lendas do que no cientificismo, o que difere do amigo Lovecraft.