Sarah sente os pulsos queimarem em volta da corda muito apertada, quase cortando a pele fina. No escuro do porão úmido e cheirando a bolor, com a respiração entrecortada ela luta para puxar o ar quente que entra em suas narinas doloridas, queimadas por conta do químico usado para apagá-la. A garganta arranha quando a saliva desce, e os olhos desfocados tentam avaliar o lugar em que está.
Presos ao caibro no teto por uma corda estirada, os braços acima da cabeça estão dormentes e seu corpo, forçado a ficar ereto, reclama em cada pedacinho de músculo, que contrai em dolorosos espasmos. Ela quer gritar de dor, mas a fita adesiva em seus lábios a impede de um sussurro de alívio que seja.
Quanto tempo ficou desacordada? O que é essa coisa úmida em seus pés que a faz escorregar nas pontas dos dedos, tornando insuportável seu equilíbrio? E por fim, que porra está acontecendo?
A única coisa que Sarah tem controle real é de seus olhos, que agora estão se habituando à escuridão aterradora que a envolve em um abraço sufocante. Isso só aumenta seu desespero. O escuro é seu inimigo e ela o teme tanto quanto a morte agora. Sua mente vasculha uma centelha de razão para entender o que se passa e tomar o controle da situação, dominando sua respiração, que sai ruidosa pelo nariz. Mas o som que irrompe quebrando o silêncio de forma brutal, rangendo como dentes ferozes, vem das dobradiças enferrujadas, acelerando seu coração. A porta do porão está se abrindo.
Sarah puxa os braços em uma tentativa desesperada de se livrar das cordas, as pontas dos dedos escorregando no chão enquanto seu corpo balança desgovernado. O som de passos na escada soa como tambor pelo ambiente quase hermético depois que a porta volta a se fechar. Bum, bum, bum…
Há um cheiro rançoso de comida que entrou furtivo junto com a porta aberta e ela sente seu estômago revirar, mas segura o vômito porque sabe que irá se sufocar com a fita em sua boca. O gosto da bile amarga prende em sua garganta e ali permanece enquanto seus olhos ficam fixos na escada de madeira, esperando aterrorizados pelo algoz que a qualquer momento irá surgir quando uma luz explode no meio do porão.
Primeiro seus olhos fecham com o amarelo florescente da lâmpada, e ai piscam lacrimejantes enquanto ela tenta canalizar sua visão para as botas de um rústico preto que vem descendo. Bum, bum, bum… Então surgem as pernas, calças jeans pretas folgadas, rotas, rasgadas nas coxas, os bolsos gastos da camisa xadrez, tão amarela quanto o rosto que surge sob uma barba por fazer há dias.
Os olhos de Sarah são agora sua maior expressão, e com eles ela grita com toda a sua alma pedindo por um socorro que ninguém fora da casa do pacato bairro irá ouvir, ainda que ela pudesse usar seu dom vocal de forma absoluta. Ele se aproxima com seu corpanzil e a obriga a levantar a cabeça para encará-lo quando está há um metro de distância. Algo em seu rosto sugere um sorriso sádico, mas ela não tem certeza, observando os lábios extremamente finos.
— Que merda é essa? — Ela grunhe, tentando se fazer entender, mas seus murmúrios são sons desarticulados presos na boca tapada.
Um dedo grosso é erguido e lentamente se aproxima da boca do homem. Sob as unhas, uma sujeira compacta se acumula, e de entre seus dentes sai um ruído de ordem — Shiiiiiii — Ele prolonga o som com a tranquilidade que seus olhos dóceis transmitem. Ela obedece.
Estendendo o braço, ele toca suavemente o rosto de Sarah enquanto ela continua a se desequilibrar. Ela sente os nódulos duros dos dedos passeando pela pele, agora molhada pelas lágrimas, desenhando um trajeto envolta de toda a face oval da garota. Seus olhos bondosos a contemplam, e isso é tão assustador que ela não consegue segurar a urina, que escorre por suas pernas, descendo pela canela e molhando seus pés descalços.
Ao perceber que a garota se urinou de medo, um prazer se apossa do homem, que se delicia na fraqueza de sua presa e percorre com os olhos o mesmo caminho que o líquido faz pelo desnível do chão. O esgar dos lábios se pronuncia mais e então ele volta o rosto de uma vez para ela, gotículas de suor brotando na testa larga, misturando às espessas sobrancelhas negras e só neste instante Sarah percebe que ele estava com a mão esquerda atrás das costas o tempo todo.
O que tem ali? Ela não tem certeza se quer saber, mas tem ciência que isso independe de seus desejos. A mão desliza devagar para frente, como em um jogo de criança. “Ah, merda, um bisturi. Esse desgraçado tem um maldito bisturi na mão”, ela pensa em desespero, murmurando e gemendo para que a solte.
Ele se aproxima do rosto dela, perto, muito perto, tão perto que Sarah pode sentir aquele cheiro quente de suor velho da camisa usada há muitas vezes e, “Ah Deus, isso é sangue? É sangue na camisa dele?”, esse cheiro rançoso de sangue apodrecido espanca o nariz dela com violência. A testa se posiciona muito próxima, ele inala, sentindo o cheiro que a pele dela exala. Ele se aproxima mais um pouquinho, pele com pele, o suor frio e melado grudando na testa dela, queimando sua tez com arrepios de pavor. Ela se balança de um lado para outro tentando desvencilhar do toque, escorregando no chão.
Sarah não percebe de imediato quando o fio gélido do bisturi penetra sua pele até o sangue começar a escorrer. Quente. Uma gota que desce a lateral da testa, percorrendo a bochecha direita, o queixo, se alojando pingo após pingo entre os seios que sobem e descem junto ao descompasso de seu coração. Então ele se afasta, o mesmo olhar bondoso, quase piedoso a encara de forma profunda nos olhos enquanto desliza a arma com precisão cirúrgica como se já houvesse feito aquilo inúmeras vezes sem nem precisar olhar mais.
O homem trabalha a navalha de forma tão rápida no rosto de Sarah que ela mal percebe que ele já terminou até a dor explodir em sua face como fogos de artifício, então, muito calmo ele coloca o instrumento no bolso traseiro e testa as bordas da pele afrouxada. Com uma sucção que arrepia todo o corpo da jovem, a pele pende sobre as pálpebras e ele se move para trás, os olhos castanhos curiosos analisando toda a parte solta como um artista observando sua obra. Puxa mais um pouco e Sarah sente que irá perder os sentidos quando ouve um som abafado, mas muito conhecido. Alguém tocou a campainha.
Pela primeira vez os olhos castanhos do homem tomam uma forma contrária à docilidade que ele tem apresentado até o momento, e olhando para cima, além do teto bolorento e escurecido do porão abafado, ele murmura algo consigo mesmo. É noite de Halloween, e as crianças estão agitadas lá fora batendo nas casas em busca de doces para encher seus baldes com caras de monstros. Entretanto, o maior de todos está bem ali embaixo com Sarah.
Ele tira a mão e a pele despensa sobre os olhos dela; então, limpando o sangue na calça, ainda sem tirar a vista lá de cima, se vira e caminha com pesados passos para a escada. O som retumba no ambiente e vibra nos ouvidos dela, agora sua única percepção do que acontece no espaço já que sua visão está bloqueada pela pele de seu próprio rosto.
Ouvindo a porta bater e de novo sentindo o cheiro rançoso de algo sendo cozido, ela prende a respiração e escorrega nas pontas dos dedos por mais alguns segundos até sentir um pequeno atrito no chão. Sua urina junto com as muitas deslizadas deve ter tirado seja lá o que ele utilizou para fazê-la deslizar, e isso a faz conseguir se manter um pouco mais equilibrada. Os ombros gritam por uma dor que queima lacerante enquanto seus pulsos presos à corda estão em carne viva. Mas ela quer viver, não importa que seu rosto esteja parcialmente dilacerado e sangrando muito.
Sarah testa a corda, o aperto a quer desanimar, só que as risadas abafadas que vêm por debaixo da porta daquele porão, risadas infantis, deixam claro que ela não será a última desse ritual macabro. As inocentes crianças já foram atraídas para o interior da casa, assim como ela, e em breve estarão experimentando horrores inimagináveis ao seu lado. Talvez ela presencie, se não tiver sangrado até a morte ou desmaiado de dor com as torturas que ainda estão por vir.
Ela esfrega os pulsos, que ardem. A pele já está tão ralada que gotículas de sangue brotam e escorrem, logo se tornará ferida aberta. Os passos acima se tornam próximos, a dor aumenta, seu coração espanca o peito, seus ouvidos atentos zunem, o sangue escorre e ela esfrega os pulsos sem parar com os braços estendidos, torcendo-os pulsos até sentir um pouco de frouxidão. Os passos estão chegando, agora apenas um par deles. É impressão, ou as risadas pararam? Não ouviu a porta da frente bater. As crianças foram embora? Ah, Deus, o que esse monstro fez? Esfrega, esfrega, esfrega até que uma das mãos cai sobre si e a outra vem junto.
Sarah despenca no chão de uma vez. O impacto da queda cobrando todo esforço que ela fez, todo peso, toda tensão. Seus ossos doem e sente estalos e espasmos pelo corpo. Fica incapaz de reagir por alguns segundos, se mantendo imóvel, sentindo cada dor sendo cobrada das últimas horas de tortura, cada articulação grunhir pelas horas que ficou pendurada naquela corda. E assim ficaria imóvel no chão, sobre sua urina, sangue e um pouco que sobrou da oleosidade, não fosse o som próximo à porta do porão despertá-la para se levantar.
Toda força que imaginou não ter mais se reuniram agora em seus músculos doloridos e foram como impulsos elétricos para as pernas, colocando-a de pé. Puxando a pele dos olhos, vê debaixo da escada um bom canto para se esconder na penumbra que a luz não alcança. É para lá que corre, encaixando-se toda assim que a porta é aberta. Passos na escada indicam que o homem voltou a descer, mas algo na sonoridade diz que o peso mudou e ela vê a bota escura. Quanto tempo ele irá demorar a descobrir que ela não está no lugar em que a deixou? Ela tapa a boca para segurar a respiração e não fazer ruídos até se dar conta que é desnecessário, a fita adesiva ainda está presa aos lábios.
Ele continua descendo, mas então para e o coração de Sarah dispara. Mais ainda. Agora sabe que sua prisioneira não está no lugar que a deixou. Ela o imagina vasculhando o espaço feito um louco, o bisturi em mãos, furioso por ela ter escapado, mas apenas continua descendo e é quando Sarah vê as delicadas e finas pernas dependuradas em seus braços. O monstro traz uma criança para o porão.
Sarah tem ciência que não será fácil se livrar desse homem, mas tem a esperança que, com os braços ocupados ele tenha os movimentos mais lerdos, então ela aguarda. Ele passa com a criança desacordada para depois da escadaria até uma distância que ela percebe ser o suficiente e, sentindo que é a hora, sai de seu esconderijo e dá a volta, subindo os degraus. Ela sobe correndo sem se importar com o barulho que está fazendo, sabendo que está sendo ouvida fugir, batendo os pés com desespero em cada degrau como se infligindo neles toda a dor que sofreu nas últimas horas, segurando a pele acima dos olhos, alcançando a maçaneta com gana desesperada, girando-a. Girando-a…
Mas a porta não vem, está trancada.
A maldita porta está trancada. Sarah e uma pobre criança estão presas dentro do porão com esse monstro sádico. Ela se vira, temerosa pelo que sabe encontrar e o vê subindo. Os olhos doces não mais complacentes, mas agora contrariados, até mesmo magoados. Ela pode ver a profunda decepção vinda dos olhos que a fitam enquanto ele sobe bem devagar. Não há pressa nos passos calculados. Sabe que ela não irá a lugar algum. Mas a jovem não irá se entregar sem lutar.
Sarah está disposta a uma boa briga.
Seus pulsos doem e sangram e se ela soltar a pele da testa sua visão irá se comprometer, mas o que tem a perder agora, além da vida? Suas pernas doloridas mal a mantém em pé, mas ao erguê-la para desferir o primeiro golpe quando ele está próximo o suficiente, ela tem dentro de si o instinto mais antigo de todos, o de sobrevivência. Quando acerta o peito largo do homem, ele recua e se segura no corrimão, caindo alguns degraus para trás, mas isso não é o bastante para detê-lo, ao contrário, sua gana pela jovem aumenta e pela primeira vez seu sorriso se escancara, deixando à mostra os perfeitos dentes perolados. Algo contraditório a toda feiura de seu rosto, do porão e do horror que ele faz ali.
Sarah toma impulso de novo, segurando no corrimão com a mão esquerda, o fitando. Seus olhos ardem por causa do suor e sangue que escorreram, além das lágrimas. O ar entra com dificuldade por suas narinas e seu corpo treme, mas ela não vai se entregar. Gostaria de dizer “Pode vir, filho da puta”, mas sua boca tapada não a permite.
Ele a estuda, ela aguarda. Não há pressa da parte dele, há urgência gritando dentro dela. Ele avança em uma simulação que logo retrocede e Sarah cai nesse golpe, chutando-o e percebendo, tarde demais, que é uma cilada. Ela agarra sua perna e a puxa. Sarah escorrega e cai para trás, batendo a cabeça com força na porta e sentindo um atordoamento. Ele mantém a posição, a observando no chão, ela fica onde está, as pernas pendendo nas escadas, a pele frouxa no rosto.
Um entorpecimento percorre seu corpo, mas está viva, é isso o que conta. Sarah testa seus movimentos. As mãos estão se erguendo. Leva uma delas até o rosto e puxa a pele para ver. O monstro ainda está de pé, estudando-a, mas agora se abaixa devagar. Está se aproximando, se ajoelha ao lado de seu corpo, leva as mãos com cuidado por seus ombros, acariciando com as pontas dos dedos, subindo pelo pescoço, enlaçando cada dos dois lados. Apertando devagar, mais um pouco, mais um pouquinho.
Sarah está sendo asfixiada muito lentamente. As mãos grandes apertam sua garganta com cuidado, pois não quer que ela apague de uma vez, não ainda. Sem pressa. Cada momento de sofrimento é um prazer único para ele. Está saboreando cada detalhe de dor que emana dos olhos dela e Sarah levanta suas mãos em uma tentativa de afastar as dele. Puxa, mas é em vão, ele é muito mais forte.
Encara-o. Aqueles olhos doces a encaram de volta. Sarah está perdendo as forças. Ela toca o rosto dele, aquela aspereza repugnante, tateando mais, indo até aqueles olhos desprezíveis, seus polegares caminhando para os castanhos brilhantes de pura maldade. Ela os enfia ali com raiva, com medo, com desprezo e o som de bolha explodindo só não é mais prazeroso do que o líquido que respinga em seu rosto e o grasnar que sai gutural da garganta do mostro. Um grito de um homem mudo que se esforça para emitir som. Ele se ergue com as mãos no rosto, tapando os olhos.
O som desgraçado saindo de sua boca é quase um lamento e não desperdiçando a oportunidade, Sarah levanta o tronco e o empurra com força. O corpo cai para trás de forma brusca e desajeitada, rolando alguns degraus, mas as pernas ficam presas ao corrimão. Ele está ali, imóvel, com a cabeça presa entre uma barra de madeira e o degrau. Ela não sabe se está morto. O medo a quer fazer ficar onde está, mas a voz da sanidade a alerta para toda a loucura que tem sido até ali e medo não é uma palavra que cabe ou existe para ela agora.
Sarah se levanta e desce, devagar, um pé na frente do outro, sempre segurando as bordas da pele que pende sobre os olhos. Ele está imóvel, ela abaixa. Não sente sinal de movimento em seu peito que indique uma respiração. Com cuidado ela verifica os bolsos da camisa dele. Não há nada ali. O desespero dá sinais de presença para ela, mas a jovem continua procurando. No bolso da camisa apenas um charuto mordido que causa asco, ela joga fora. Olha para o rosto acinzentado, o pescoço parece torcido nesse ângulo esquisito, os fluídos negros descendo pela barba rala, misturando ao barbante que ela agora percebe, então ela o puxa e ali está uma chave.
Um tranco no barbante não é o suficiente para o arrebentar como já vira nos filmes, mas faz a cabeça dele subir e descer.
Ela tenta mais uma vez, e na terceira arrebenta, mas o monstro reage aos solavancos e agora, acordado, agarra a mão de Sarah com força. A luta se inicia novamente. Ele está preso com a cabeça, ela está sobre ele tentando se desvencilhar sem nenhuma arma com que se defender a não ser com garras e dentes. Garras e dentes. Sarah não tem tempo para pensar muito sobre suas opões e a frieza pesa sobre sua decisão ao puxar a ponta da fita presa à bochecha. Pedaços finos de pele descolam dos lábios quando ela desgruda, mas agora ela sabe que o pior já passou, só precisa liberar toda sua boca e abri-la o máximo possível, e então mal se dá conta quando está com parte da carne do pescoço do homem dentro dela, mastigando, sentindo o gosto do sangue que não o seu, arrancando o músculo e cuspindo fora.
Ela já poderia ter parado, mas não para. Mesmo quando não há mais movimento no corpo abaixo do seu, Sarah continua mordendo e mordendo em um frenesi louco, deixando suas lágrimas se misturarem ao sangue do homem que já está em todo seu rosto, seu pescoço, seus seios e não sabe por quanto tempo mais mastigaria aquele pescoço, não fosse o grito aterrador vindo abaixo, ao pé da escada.
A garotinha acordou. Apontando para ela, apenas conseguiu balbuciar, estarrecida de pavor:
— Monstro.
Esse Conto faz parte da antologia – Obscuro, dsiponível na Ama