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Artigos, Análises, Dicas e Contos

CONTO – O Defunto – Thomaz Lopes

por | maio 7, 2024

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.
 
Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia.
 
De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.
 
E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!
 
Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do “cadáver” que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?
 
E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.
 
Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão!  Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos. – Oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja.
 
E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo – e sente uma a uma ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!
 
Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria…
 
Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.
 
Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se –  assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.
 
Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.
 
Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos – nem vivalma! Apenas sombras. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: – Marcha! Marcha! – As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva – o defunto caminhava.
 
De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma ideia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. – Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo – e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. – Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se “ele” ali estava oculto contemplando a felicidade do outro “ele”! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse, também seguir-lhes o voo!… Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra – e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo… – Mas ele era cadáver e, na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos… Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma… E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o… Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria ! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo – coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte…
 
Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.
 
* * *
 
Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.
 
Pensou, então, no seu sonho – e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.
 
Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte…
 
* * *
 
Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol – único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.
 
Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro – longo como um deserto; a noite inteira – vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber.
 
Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!
 
O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentar ! A fome que ela fizera crescer ! – E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as – e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.
 
Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.
 
Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita – e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura…
 
 
 

Thomaz Pompeu Lopes Ferreira: Um Legado de Versatilidade e Talentos Múltiplos

Thomaz Pompeu Lopes Ferreira, nascido em 16 de novembro de 1879, na vibrante cidade de Fortaleza, foi um homem de múltiplos talentos e realizações notáveis. Conhecido também como Thomaz Lopes, ele deixou uma marca indelével não apenas na literatura brasileira, mas também na diplomacia e no jornalismo. Sua vida breve, mas intensa, é um testemunho de dedicação, paixão e criatividade.

Filho de João Lopes Ferreira Filho e Maria de Sousa Lopes, Thomaz nasceu em uma família que valorizava a educação e a cultura. Desde cedo, mostrou-se um estudante dedicado, ingressando na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No entanto, sua paixão pelas letras o levou a abandonar a medicina em favor do estudo do direito na renomada Faculdade Livre de Ciências Sociais e Jurídicas, hoje conhecida como Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Em 1903, graduou-se em direito, marcando o início de uma jornada que o levaria a explorar os limites de sua criatividade e talento.

Thomaz Lopes destacou-se não apenas como advogado, mas também como diplomata. Sua carreira diplomática o levou a servir em várias capitais europeias, incluindo Madrid, Montevidéu, Haia, Bruxelas e Paris. Seu trabalho como diplomata foi caracterizado por sua habilidade em lidar com questões complexas e sua dedicação ao serviço público.

Paralelamente à sua carreira diplomática, Thomaz também deixou sua marca no jornalismo. Como colunista em jornais renomados como Gazeta de Notícias, O Paiz e Correio da Manhã, ele compartilhou sua perspicácia e insight sobre uma variedade de questões sociais e políticas, demonstrando sua habilidade em comunicar-se de forma clara e persuasiva.

Além de seus talentos como advogado, diplomata e jornalista, Thomaz Pompeu Lopes Ferreira foi um prolífico escritor e poeta. Ele é mais conhecido por ser o autor da letra do Hino do Ceará, uma composição que captura a essência e o orgulho do povo cearense. Sua colaboração com o compositor Alberto Nepomuceno resultou em uma obra que continua a ressoar nos corações dos brasileiros até os dias de hoje.

Infelizmente, a vida de Thomaz foi interrompida precocemente pela tuberculose, uma doença devastadora que tirou dele a oportunidade de realizar todo o seu potencial. Ele faleceu em 15 de julho de 1913, em Davos, Suíça, deixando para trás um legado de realizações notáveis e um vazio na comunidade literária e diplomática brasileira.

O corpo de Thomaz foi transladado para o Brasil, onde foi sepultado com honras no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Sua memória continua a ser reverenciada por aqueles que reconhecem sua contribuição para a cultura e a história do Brasil.

Em suma, Thomaz Pompeu Lopes Ferreira foi muito mais do que apenas um escritor, poeta, advogado, jornalista e diplomata; ele foi um visionário cujo legado continua a inspirar e encantar gerações posteriores de brasileiros. Sua vida e obra são um testemunho da riqueza e diversidade da cultura brasileira e de sua capacidade de produzir indivíduos excepcionais como Thomaz Lopes.

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